quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Sobre Chatô

Em certo aspecto, parece um filme a superar muitas coisas. Chatô quer superar sua classe, através de seu jornal, vendendo sua opinião. Quer superar Getúlio Vargas, com quem tem uma relação ora de solidariedade, ora de rivalidade (inclusive no amor à mesma mulher). Quer superar seu delírio, que se dá na forma de um programa de auditório apresentado por Chacrinha, aonde as mulheres de sua vida testemunham contra ele. Quer superar a doença que o paralisa e o irá matar.

O filme tem muito o que superar também. Deve dar conta, em uma hora e quarenta e cinco de projeção, da vida muito movimentada de Chateaubriand. Deve superar as comparações com Cidadão Kane (que já existiam antes do filme). Deve superar as condições em que foi feito. Acaba sendo um projeto pelo qual a gente torce, nem que seja para ver um bom filme surgindo apesar de tudo. É pena que o filme se perca em meio a tantos registros conflituantes "que lutam entre si sem jamais dar trégua", saltos temporais sem pé nem cabeça e uma mise en scéne incoerente e inapropriada, isso quando não é somente não-existente. Os atores trabalham para além do constrangimento e mais um pouco: fazia tempo que eu não via um prestação tão abobalhada e fora do tom como a do Paulo Betti como o Getúlio Vargas de anedota. A personagem, ficcional, de Andréa Beltrão poderia ter sido um poderoso vetor dentro do filme (ela atravessa décadas da história brasileira fazendo de otários dois dos indivíduos mais poderosos do Brasil) mas a dramaturgia do filme não resolve nada. A proposta de fazer a forma do filme como um show de auditório seria louvável, se desse em alguma coisa, se fosse algo além de acessório; fica difícil não imaginar o que Sganzerla não faria com um formato desses. 

Se sai do filme sem saber quem foi Chatô, quem foi Vargas, quem foram as esposas de Chatô, quem foi Vivi. Lembra um sub-sub-Scorsese (pois sub-Scorsese já é o próprio, cada vez mais longe de filmes como O rei da comédia e Caminhos perigosos): filme de edição agressiva, que passa ao largo de qualquer forma dramatúrgica coerente. É um filme de economia curiosa: apressado em pular de período histórico em período histórico, ou na relação entre Chatô e os demais personagens — tudo de passa de forma ilesa, vem personagem, vai personagem, tudo girando tresloucadamente em torno da figura de Chatô, incompleta, distante, desconhecida. O filme parece querer ocultá-lo debaixo de seu gigantismo, que mais se parece com elefantíase. As coisas vão acontecendo sem peso, sem gravidade. Chatô sequestra a filha, que passou a morar com sua segunda esposa depois do desquite. Falhando isso, pede a Vargas (na verdade, ameaça Vargas na ponta de faca, para depois virá-la contra si ameaçando abrir a barriga e espalhar suas tripas na mesa) que ele mude uma lei para que assim ele, Chatô, consiga a guarda da filha. Pois bem. Consegue. E disso nada acontece, que não uma cena embaraçosa, com a Leandra Leal se estribuchando em espanhol. A filha volta a aparecer somente para olhar feio no tribunal do Chacrinha e participar de um número musical estapafúrdio. Me parece ser o procedimento geral de um filme, que corre aos trancos e barrancos na tentativa de dar conta de mais de setenta anos da vida de um homem profundamente imerso na vida pública nacional. Há procedimentos estúpidos, como o vizinho de cela se estufar com a comida que Chatô se nega a comer (lhe foi enviado um prato suntuoso, com champangne, pela Vivi, depois que ela o traiu à Vargas), e lhe presentear um relógio de ouro como forma de agradecimento; ou, momentos em que há interesse, mas são minados pela execução míope, como o jogo de cartas entre Chatô, Vargas e Vivi.

Dito isso, parece que o filme foi dirigido por um desinteressado. Não creio em ser esse o caso. Antes, é caso de ser filme de paixão aonde o amor nublou as outras faculdades, algo que pertence à família de filmes como The room, aonde a paixão por de trás da câmera é explicação e justificativa para o fiasco, diferente de meros oportunistas (Soderbergh), caducos (Bertolucci), ou ineptos (os Andersons, Malick). Como se Guilherme Fontes se empenhasse numa luta contra a figura múltipla de Chatô, sem chance de vitória.

Do além túmulo, Chateaubriand tem a última risada. 

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