segunda-feira, 8 de maio de 2017

O dragão da maldade contra o santo guerreiro

Texto do amigo Marcelo Ribeiro:

Esse filme pode ser considerado uma saída para uma criação dramatúrgica mais coesa e menos ingênua se compararmos com as obras anteriores do diretor. É óbvio que deve-se respeitar a realidade histórica e não criar maquinações de mais nas comparações, porém, não acho essa afirmação exagerada. É a analise da realidade histórica passada que faz com que Glauber crie um cinema mais analítico e direto nas imagens. 

A narrativa não tende ao discurso revolucionário fechado. Os personagens caminham na primeira divisão (até a morte do cangaceiro) do filme em uma direção supostamente didática, só que depois dessa virada, Antonio das Mortes que pelo discurso e postura demonstra que já vinha pensando sobre seu papel descamba para o messianismo, mas não é o messianismo dos primeiros filmes, heroico. É um messianismo sem lugar, assim como o filme que busca cruzar as mais opostas visões políticas em um realidade histórica que constata que nenhuma delas tem perspectivas reais de mudança. Mais do que isso, a realidade onde os amores foram perdidos é trocados pela erudição de alguns poucos, o mesmo que nada para alguém como Antonio das Mortes que busca o rival e encontra seres despolitizados pela barbárie cotidiana da política.

Disso fica claro que nesse filme existe uma tentativa de amenizar alguns estragos ideológicos que envelheceram mal nas outras obras. Contudo, não é um filmes de correções é um filme de revisão, um mecanismo consciente que busca respeitar a memória da visão anterior e ao mesmo tempo evitar o romantismo. 

Percebo que Antonio das Mortes realmente sente pena dos beatos, Glauber quis assim. Não terminou a luta como havia pensando, agora tem que lidar com a imagem do messias em si mesmo, incorpora uma mistura de compaixão e remorso. Ao seu lado o professor que não crê que existam lutas igualmente importantes tece uma espécie de discurso sobre o filme, quase um comentador do que acontece na tela.

Glauber se relaciona ativamente com a nova realidade histórica que lhe esperava, soube tecer em o “Dragão da maldade” coisas inimagináveis em seus três primeiros longas. Recoloca ambiguidade aonde o discurso pronto não permitia, por exemplo, na cena onde o coronel e os jagunços vão atrás de Antonio das Mortes, o Coronel diz algo como “se Deus vai ajudar um criminoso, vai me ajudar porque derramei menos sangue do que você”. O que isso quer dizer? É claramente a erupção de um novo tipo de personagem (é possível classificar como antagonista) que ao longo dos filmes da década de setenta e de “Idade da Terra” se desenha como alguém em aberto moralmente; com certeza um agente do poder e praticante de seus benefícios, porém não muito distante eticamente do protagonista. O filme lida com a diferença que separa o Coronel de Antonio das Mortes. Questão central para Glauber depois do 1969: qual o discurso possível para eles depois de tantas semelhanças?O filme não responde. Por situações como essa acredito que Glauber tenha contribuído para um cinema menos óbvio. 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

De novo, com um ano que se inicia, mais uma das listas inúteis, a dos melhores filmes de sempre. Se fosse fazer uma lista dos melhores filmes do ano passado, conseguiria pensar em apenas um, dos lançamentos novos (sem os atrasos vergonhosos que são praxe da preguiçosa distribuição brasileira): Elle, naturalmente, que me faz pensar se aquela velha máxima de que o cinema é coisa de gente velha não se tornou verdadeira.

[Algumas palavras a respeito do filme do Verhoeven, já que o mencionei. O que mais me chocou é que o filme excreta fluidos. É um filme que sua, sangra, urina, goza. A coragem de Verhoeven vem de longa data, de um cinismo nada "atual", nada "hipster" e "millenial". Junto de Brian De Palma (colega de geração com quem mais se parece, e não apenas pelo apreço de ambos a Hitchcock), o que Verhoeven tem de sobra é uma extraordinária cara de pau, dessas que criam esses momentos inacreditáveis como a cena em que a Huppert e o médico estão fechando as janelas da casa no meio do vendaval. Não é o melhor filme dele, naturalmente, mas isso não quer dizer absolutamente nada.]

1. Only angels have wings, Howard Hawks.
2. Der Tiger von Eschnapur, Das Indische Grabmal, Fritz Lang.
3. Au hazard, Balthazar, Robert Bresson; La règle du jeu, Jean Renoir.
4. Jeder für sich und Gott gegen alle, Werner Herzog.
5. The 39 steps, Alfred Hitchcock.
6. Sanma no aji (A rotina também teu seu encanto), Yasujiro Ozu.
7. On dangerous ground, Nicholas Ray, Silver Lode, Allan Dwan.
8. The searchers, John Ford.
9. Yi Yi, Edward Yang.
10. Touch of evil, Orson Welles, The thing, John Carpenter.
11. The good, the bad and the ugly, Sergio Leone, Blaise Pascal, Roberto Rosselini.
12. Rocky, John G. Avildsen, Sylvester Stallone, Loulou, Maurice Pialat.

[Adendo: ao escrever essas notas, ainda não havia visto Sully. Filme notável. Nem que seja apenas pela coerência do Eastwood. É um filme de conciliação, e, mais, de tolerância. Visto após os resultados das eleições americanas de 2016, o discurso de Eastwood é muito vivo: estamos todos no mesmo barco, e apenas juntos conseguiremos fazer algo. E daí que o filme seja deselegante, que a montagem derrape aqui e ali? O que vale não é a grandiloquência, mas a eloquência: Eastwood tem algo a fazer, e o faz, com uma mão nas costas. Porque quando faz algo com ambas as mãos, temos algo como A perfect world, ou True crime.]