quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

As aventuras de Paul Verhoeven no País do Contemporâneo



Velhas coisas do cinema

Quem se lembra de uma fita chamada El Dorado, que só mais tarde soube tratar-se de um clássico da arte, exibida faz muito tempo no Central, hoje também Eldorado (onde se entrava com uns ingressos de carona e onde cantava a tanguista La Argentina), quem se lembra? No final havia um suicídio impressionante, a mulher enterrando um vasto punhal no seio, bem devagarinho, e o sangue que lhe espirrava no pescoço, no rosto, uma coisa horrível de se ver, quem se lembra?

Lembro-me que passei uma noite de cão, com "cochemares" negregados, onde flutuava aquela mulher branca, os olhos nadando nas olheiras, o seio meio nu, as duas mãos apertadas no cabo do punhal, vou-te!

Eu tinha doze ou treze anos. Quem se lembra, então, de Atrás da porta, fita tão velha que nem sei onde a vi, com um sujeito que era esfolado vivo atrás de uma porta pelo velhíssimo Bosworth (se é que se escreve assim...). Falou-se tanto na crueza dessa cena! mentiu-se tanto! Um tio meu contou-me (e eu me deixei ficar a ouvi-lo, porque coisa boa é uma boa mentira...) que eu não vira tudo não, não pensasse... Que o capitão, depois de esfolar o sedutor, arrancava-lhe a pele às tiras, como quem descasca uma banana, mas que a censura tinha cortado... Falou-me mesmo em alguém a quem se teria assassinado, em Hollywood, para conseguir um maior realismo; ninguém se lembra?

E de She, com Betty Blythe, quem se lembra? A deusa, que também foi rainha de Sabá, aparecia de barriga de fora, e tinha o umbigo mais bonito que jamais se viu. Ao deixar de ser she, punha-se a rodar como um pião. E quem se lembrará de uma fita do Valentino com a formosa Dorothy Dalton (que o povo chamava "Doroti Daltôn"), inidentificável para mim, e que se passava no pólo, a bordo de um velho cargueiro prisioneiro dos gelos? Tenho na memória uma cena em que o par ficava fechado no interior do navio devido a uma avalanche, e que havia então um negócio de falta de ar, ó boy, que deu dispnéia em todo o cinema.

Por falar em falta de ar, quem se lembra da primeira fita de submarino, que acho chamava-se Submarino mesmo, com Bancroft, se não me engano, e que quase mata meu avô, então muito cardíaco, coitado, ao lhe narrar eu a cena da tripulação morrendo asfixiada no fundo do mar? E já que Bancroft está em jogo, quem se lembra de Docas de Nova York, com Betty Compson e ele, ele quebrando a cara de todo mundo? Que grande fita! Direção de Sternberg... Mas isso não vem ao caso. Vem ao caso Evelyn Brent, ainda com Bancroft, em Paixão e sangue, lembram-se? Que mulher! Lembram-se da sua boca pintada de coração? Lembram-se da luta final com o velho Fred Kohler, um dos sujeitos mais fortes que já nasceram, e cujo triste destino em cinema, fora alguns filmecos que dirigiu, era ser saco de pancada de mocinhos?

Mas briga de fato havia em Ouro e maldição, o imortal silencioso, naquela cena final dos dois homens no deserto, lembram-se? Saía-se do cinema com uma vontade assassina de esganar alguém, rapidamente, num canto de rua. Briga boa também era aquela de Pat O'Brien, já no falado, num filme da Universal de Edward Cahn, cujo nome me passa, maravilhosa como movimentação de câmera, lembram-se? 

Quanta coisa! Fossem todas lembradas, e essa crônica inventaria uma dízima de palavras, de memórias de pequenas coisas eternas. O beijo de Jannings em Lya de Putti, por exemplo, em Variété. Três rugas paralelas, perfeitamente paralelas, no pescoço de estátua de Brigitte Helm, ao se voltar para olhar seu amante, em Atlantide. Os pés de Raquel Torres, no Deus branco. O busto nu de Heddy Kiesler, hoje Lamarr, em Êxtase. A inesquecível cena de Asphalt, quando Dita Parlo, com um pulo de gata, monta na cintura do jovem polícia, e a máquina desce para só se ver seu pé nu, verdadeira presa, fincado na perneira brilhante...

Não  terminarei essa cônica com o clássico "mais vale esquecer". Não, é preciso lembrar, lembrar sempre. Pois se o cinema continuar como está, só mesmo o legado de nossas lembranças alimentará qualquer futura história do Cinema. Porque se eu pegar algum dia minha filha dizendo: "Lembra-se do ...E o vento levou?", eu... eu sou bom pai, mas, numa hora dessas, eu não sei não...


Vinícius de Moraes

A manhã, 19 de abril de 1942.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O dia dos independentes

Manny Farber


A principal tendência acontecendo hoje em Hollywood é na direção da formação de empresas independentes de cinema que podem ter a expectativa de algum dia fazer filmes apreciadamente menos covardes e comercializados do que os atuais produtos dos grandes estúdios. Pelo menos uma dúzia dessas companhias foram formadas nos últimos dois anos, mas são independentes pela metade, porque muitos deles são parcialmente financiados pelos grandes estúdios e todos eles tem que distribuir seus filmes pelas franquias dos grandes estúdios. Os nomes e donos de alguns destes novos estúdios são: California Pictures (Preston Sturges e Howard Hughes), International Pictures (William Goetz e Leo Spitz), William Cagney Pictures (os irmãos Cagney), Vanguard Films (Selznick), e outros, chefiados por Bing Crosby, Sam Wood, Monter e Ripley, Hal Wallis, etc. A razão pela qual eles foram formados, fala-se, é para permitir que seus donos cortem o imposto em cima de seus ganhos: ao formarem suas próprias empresas, essas pessoas podem fazer menos filmes por ano, pagando salários semanais nominais, e registrar sua declaração do imposto de renda com base nos ganhos financeiros. De acordo com as regras da Receita Federal, é permitida uma maior retenção de lucros nesses ganhos do que dos salários e taxas. Essa pode, ou não, ser a razão por trás dessas novas empresas, mas muitas dessas pessoas são técnicos talentosos, inteligentes e sensíveis, e eles devem querer, também, fazer filmes mais importantes do que os produtos dos grandes estúdios. 

Essa tendência não é levada muito a sério pelos grandes estúdios, já que coisa similar apareceu durante a Primeira Guerra Mundial e não levou a lugar algum; e uma vez que eles detém a distribuição numa camisa-de-força, eles não irão distribuir filmes que fazem os deles parecerem inadequados. Mas uma ou duas essas empresas — por exemplo, International Pictures, que tem Nunnally Johnson, Casey Robinson e Gary Cooper sob contrato, e um sucesso de bilheteria, Casanova Brown, para começar, e a empresa de Sturges e Hughes, a qual é improvável, tendo em vista os filmes passados de Sturges, que faça filmes fracassados — provavelmente conseguirão tornar-se companhias independentes, com sua própria rede de distribuição, fazendo filmes que poderão causar surpresa e preocupações aos grandes estúdios. 

Uma vez que muitas dessas pessoas desses novos grupos já estavam preocupados em fazer filmes melhores que a média, eles provavelmente farão filmes ainda melhores por conta própria, Mas eu duvido que eles farão filmes que são francamente originais em seus estilos ou independentes em suas ideias, principalmente porque são todos criados em Hollywood ou, tão importante quanto, estão trabalhando em Hollywood: há muitas coisas sobre aquele lugar que contribui para um certo tipo de filme, no modo em que um clima frio contribui para certos tipos de animais. Coloque uma pessoa produzindo filmes em Hollywood, e ele invariavelmente começará a pensar em termos de peças filmadas em vez de filmes, em arte ser separada de entretenimento, e então não algo para ele, e em não fazer um filme que irá mudar pensamentos ou sentimentos. Eu sugiro esses independentes irem para qualquer outro lugar dos Estados Unidos para fazerem seus filmes. Meu pessimismo sobre o que eles podem fazer em Hollywood é instigado pelos filmes que foram feitos até agora por eles: Casanova Brown, Lady of Burlesque, Johnny come lately, Flesh and fantasy, os quais são tão pouco diferentes da média de Hollywood que não importa em quais condições eles foram filmados. O único filme muito diferente que eles fizeram, The voice in the wind, de Monter e Ripley, é uma versão de 1928 do tipo de filme que é feito hoje, misturado com boas intenções e influências do que há de pior nos filmes Europeus de “arte”.

A outra tendência de Hollywood — a de fazer filmes cada vez mais longos — pode não ser tão importante quanto a explosão de produtores semi-independentes, mas já resultou em filmes mais cansativos do que precisavam ser, e ameaça fazer outras coisas, como substituir os programas duplos por filmes tão longos como dois. Foram feitos nesse ano setenta filmes que tem duração de, pelo menos, uma hora e quarenta minutos; vinte e sete que duram duas horas, e seis — Dragon seed, Since you went away, Frenchmen’s creek, An american romance, Wilson e Mr. Skeffington — que tem uma média de duas horas e quarenta, e custou pelo menos $3.500.000 cada um para serem produzidos. A principal razão de alarme sobre esse aumento é que pode causar produtores a cortar suas produções de filmes baratos, que sempre foi o ponto de entrada mais provável para gente nova, o lugar mais provável de se encontrar técnicas e assuntos não convencionais, e coisas de modo geral mais relaxadas e humanas. As pessoas do cinema dizem que toda essa tendência é um fenômeno temporário, e que a demanda por filmes baratos — e programas duplos — pelo público é grande demais para parar com a produção de filmes B. De qualquer modo, Hollywood parece cada vez mais ser da opinião de que um grande filme não pode ser feito por menos de um milhão de dólares ou ter menos de uma hora e meia, e uma vez que ela se acostuma a essa ideia, você poderá geralmente esperar um filme mais acadêmico e conservador. 


New Republic, 28 de agosto de 1944


Tradução de Gustavo Salvalágio.

Miss Violence filme de Alexandros Avranas, lançado em 2013 (Grécia)

Com a palavra, o amigo Marcelo Ribeiro:





























O filme Miss Violence possui enquadramentos centralizados. Prioriza as ações que se desenvolvem no plano como força narrativa, opta por uma montagem ritmada, mas que não domina a imagem completamente. O som aparece como elemento externo ao plano, apenas, quando ele é justificado por algum enquadramento anterior. Nesse filme está claro que existe a opção de conservar uma imagem por vez, dentro da narrativa não existem acontecimentos paralelos. Os outros “núcleos” aguardam enquanto o foco narrativo acontece no movimento escolhido.

O argumento aparece ao longo de pistas que vão dando constância para a dramaturgia do filme se desenvolver, essas pistas são na verdade pequenos detalhes ressaltados – pelo foco narrativo – que se tornam força motriz para o comportamento dos personagens em relação aos acontecimentos futuros e passados (suas escolhas). A relação ambígua dos personagens acaba deformando os semblantes que eles carregam ao ponto de no fim do filme todos serem uma única vítima sem expressão. O que permanece caracterizado e sem mudança é a dependência em relação ao lar, o único elemento familiar que não muda na dinâmica dos personagens é a casa.

A casa é o centro dramático, é interessante perceber nas cenas fora da casa que não existe nenhum plano ou ruído sonoro que esteja solto, o ambiente externo só existe de modo intermediado por algum personagem, o exterior não aparece sozinho. O personagem (por sua vez) carrega um ponto de vista ofuscado pelo lar; com isso ficam claras duas coisas: não é possível criar uma certeza ou uma impressão – isenta – do ambiente externo, e também, quem vê o filme não pode ver ele livre da sombra do lar já que o intermediador dos ambientes é sempre o personagem.

O título e o cartaz do cinema definem o filme como violento, mas os acontecimentos da narrativa nem sempre são argumento de apoio para esse rótulo. Ao longo da narrativa (como no bom “thriller”) é comum ocorrerem fatos que desmentem essa opinião formada antes do começo do filme. A atenção narrativa não busca definir de modo repetitivo o quanto o filme é violento, a narrativa se desenrola de maneira trivial, o que lhe sedimenta a violência é a opinião pré-formada ser ultrapassada de uma hora para outra, dentro da estória (como no bom “thriller”), do violento para o muito violento. A opinião criada (pelo cartaz e pelo nome) antes do filme é sem dúvida uma comprovação de que a dedução do cinéfilo tende ao apaziguamento (mapeamento) conceitual – ainda mais quando “vivemos” de cinema e “vemos” um filme. 

A primeira vista Miss Violence é um insosso filme feito para o “circuito de arte” que poderia ser feito em qualquer país do mundo (no mau sentido da expressão). A trilha sonora (por sua vez) também parece molenga, todavia, conforme corre a narrativa a música revela que foi habilmente escolhida. Miss Violence não é um filme musicado, talvez esteja nisso a força da trilha, a evidência externa-narrativa da escolha musical é a forma pensada que desencadeia a música como um elemento que não funciona para confirmar ou para negar, as ações dos personagens é que provocam a música, eles ligam a música.

O filme trata de um caráter perigoso da vida: para vencer um conflito é preciso antecipá-lo. A violência absoluta dentro de um conflito é aquela que existe como antecipação ao seu movimento normal. Miss Violence de “Alexandros Avranas” se aproxima muito de obras contemporâneas, com tema e qualidade parecidos, como é o caso de Bastardos de Claire Denis, O clã de Pablo Trapero e Incêndios de Denis Villeneuve. 


(Nota minha: Dois diagnósticos precisos: esses filmecos "de arte" e o apaziguamento que eles desesperadamente negociam com mercado e público (caso contrário não existiriam), e esses filmes feitos sem noção de onde se vive (que é diferente de "cor local", que é mero comercialismo cultural). Esse último ponto é importante. No Brasil, se faz filmes apesar do Brasil. Segue-se uma cartilha Cannes-Berlin-Veneza-e-o-escambau, mas não se torna o olhar pra própria rua aonde se vive. Essa esquizofrenia está bem servida no cenário atual brasileiro, cenário "cultural", "meio artístico", aonde não se faz aquilo que Sganzerla chamou tão bem de Filmes de Cinema, mas se faz esses produtos culturais, seja Vik Muniz, essa nova música brasileira hipster-salafrária (como em Los Hermanos), seja as trapaças que se chamam de filmes em nossos festivais. 

Em frente a isso tudo, devemos fazer aquilo que um amigo sugeriu, fazer uma mostra Ashton Kutcher num cineclube: ah!, mas a turminha descolada não iria entender a ironia! Os chimpanzés de zoológico se reconhecem perante um espelho, mas o estudante de cinema não ...)

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Filmes teatrais


Manny Farber



Como muitas palavras usadas ao falar de filmes, a palavra "teatral" é vaga e frouxamente aplicada, usualmente como um termo de desprezo. Já que eu a uso tanto e porque eu acho que é um termo importante na crítica de cinema, eu gostaria de dar a minha definição dela. 

O uso de "teatral" como a descrição de um filme depende essencialmente do modo em que os eventos do filme estão relacionados com o olho da câmera. Se os eventos são arranjados para ocorrer como se não houvesse câmera presente, se a câmera meramente assiste e grava como aqueles eventos se dão, o filme é, ao meu ver, da verdadeira natureza de um filme: quer dizer, é não-teatral, e em vias de se tornar uma anomalia nesses dias. Nesse caso, se verá a atuação e procedimento dos eventos serem impulsionados somente por fatores de dentro do próprio evento, independente da câmera. Portanto, se os eventos não são tratados como espontâneos, acontecimentos inalteráveis testemunhados por uma câmera impessoal, mas são arranjados perante ela como se ela fosse o olho da platéia e os eventos se desenvolvessem para que eles pudessem serem vistos pela câmera, no papel da platéia, o processo é essencialmente teatral. Trata-se então de uma reencenação para uma platéia — o processo não é mais o de assistir uma ação mas o de uma atuação para aqueles que assistem. A diferença entre o filme teatral e o não-teatral é mais sentida quando, vendo um filme verdadeiro, se sente que aquilo foi assistido pela câmera em uma maneira a deixar aquilo com uma vida própria, que acontece sem se referir para uma platéia — claramente não a atitude do palco. Toda a complexidade de relações (ator para ator, ator para lugar, etc.) é consistentemente interligada, procedendo como se alheio ao diretor, escritor ou operador. Os melhores filmes de Clair, os filmes ingleses de Hitchcock, Ouro e maldição, de von Stroheim, os melhores trabalhos russos, os filmes de Griffith, a versão francesa de Crime e castigo são exemplos de filmes que procedem sem serem molestados pela ideia da platéia.

Quando um filme é chamado de teatral é convencionalmente pensado que se trate de um filme estático em termos de locação, falastrão, ou ambos. Contudo, a cena do discurso improvisado de Donat para a reunião política, em Os 39 degraus, de Hitchcock, é ambos, e ainda é essencialmente cinematográfica por causa que a atitude em filmá-la foi aquela de assistir impessoalmente, com uma aderência estrita para o curso inviolável da corrente de eventos, de achar de momento em momento a coisa mais significante para ver: isso é, as relações dentro do evento nunca foram sacrificadas pela relação entre a cena e a platéia. De outro lado, o último filme de Hitchcock, Um barco e nove destinos, é eminentemente teatral, mas não porque é cheio de diálogos e confinado em um mesmo set. Sua teatralidade está no fato que tudo é um arranjo no qual a platéia não está, como deveria, fora do evento, mas é a principal pessoa no barco, a pessoa a quem todos falam e a quem tudo está acontecendo. O evento que está supostamente ocorrendo perde convicção a cada momento por causa disso — simplesmente não está ocorrendo em um barco salva-vidas no meio do oceano mas bem na sua frente em um palco. As personagens estão constantemente ultrapassando os limites da cena num discurso que se divide da cena devido ao fato que suas palavras não são mais dirigidas e provocadas pela situação mas pela platéia. É por isso que esse filme, e a maioria dos filmes de Hollywood, são visualmente enormemente inadequados ao conteúdo do enredo.

O fato de que um filme é menos teatral quando a atitude em construir a ação é “como o evento aparece?” é dependente do fator inicial no processo do filme, a câmera, que é, em termos simples, uma máquina para gravar o diário visual de um evento. O filme que quebra e projeta eventos para fazer deles uma peça perante a câmera imediatamente destrói a felicidade da câmera: não sobra mais evento, apenas representações dele, e a preservação da pureza do evento é a razão de ser da câmera. Igualmente, o filme que é visto às avessas, através de uma complexidade de ângulos espetaculares de câmera, não é menos teatral por, novamente, destruir a função principal da câmera para fazer dela a principal animadora no processo do cinema — além de ser vulgar.

A maioria dos roteiros [scenarios] hoje são escritos com tanta falta de consideração em mostrar suficientemente os eventos que o total da história e personagens pesa mais do que o produto visual final; depois que você ouve o som desses filmes nunca mais você será influenciado por suas ideias, porque essas ideias raramente são igualadas, comprovadas ou sintetizadas pelas imagens do filme. Há realmente uma confiança anormal em Hollywood em quão bem eles conseguem projetar qualquer emoção ou evento em termos visuais: então em filmes como Um barco e nove destinos e Casablanca — os dois filmes teatrais mais populares que pude pensar no momento — você vê os diretores e escritores tentando uma execução visual de tudo desde jazz até pronunciamentos sobre a história da última década, atirando pelo caminho contra argumentos de amor, intriga e da natureza da guerra, e na verdade dando apenas uma inexata e efêmera pista dessas coisas e jamais nesse meio tempo chegando sequer remotamente de uma verdade em cinema. É minha opinião de que o fascínio desses dois filmes está em um fato visual, aquele de ver pessoas vitais e de aparência revigorante, mas não em nada do que estão fazendo ou dizendo.


New Republic, 14 de fevereiro de 1944

Tradução de Gustavo Salvalágio.

sábado, 16 de janeiro de 2016

One of my American Western heroes is not John Ford, obviously. To say the least, I hate him. Forget about faceless Indians he killed like zombies. It really is people like that that kept alive this idea of Anglo-Saxon humanity compared to everybody else’s humanity—and the idea that that’s hogwash is a very new idea in relative terms. And you can see it in the cinema in the Thirties and Forties—it’s still there. And even in the Fifties. But the thing is, one of my Western heroes is a director named William Witney who started doing the serials. He did Zorro’s Fighting Legion, about 22 Roy Rogers movies; he did a whole bunch of Westerns . . . John Ford puts on a Klan uniform [inThe Birth of a Nation], rides to black subjugation. William Witney ends a 50-year career directing the Dramatics doing “What You See Is What You Get” [in Darktown Strutters]. I know what side I’m on.

—Quentin Tarantino, in conversation with Henry Louis Gates, in The Root


Então quer dizer que o Tarantino é o novo paladino dessa justiça ressentida e vingativa que formou e anima Bastardos inglórios, Django livre, e Os oito odiados? E o malvado John Ford, só mais um racista típico, não importanto a evidência dos filmes? (Porque não mostra negros violentamente matando brancos para acalentar esse gosto ressentido por vingança? Porque renega completamente a vingança, seja do branco, do negro ou do índio? Porque trabalha com as contradições, em lugar de montar fantasias onanistas de uma cinefilia doente?)

Parece mais um dos casos "o mosquito pode picar o quanto quiser um elefante, mas ele ainda será só um mosquito, e o elefante será ainda um elefante."

The mistake has always been to look for the paternalistic, find it in Ford’s work, and then make the leap that it is merely so. If there’s another film artist who went deeper into the painful contradictions between solitude and community, or the fragility of human bonds and arrangements, I haven’t found one. To look at Stagecoach or Rio Grande or The Searchers and see absolutely nothing but evidence of the promotion of Anglo-Saxon superiority is to look away from cinema itself, I think. In Stagecoach and Rio Grande, the “Indians” are a Platonic ideal of the enemy—every age has one, one can find the same device employed throughout the history of drama, and in countless other Westerns. As for The Searchers, the film becomes knottier as the years go by. The passage with Jeffrey Hunter’s Comanche wife Look (Beulah Archuletta) is just as uncomfortable as the courtroom banjo hijinks in The Sun Shines Bright, particularly the moment when Hunter kicks her down a sandbank—but the comedy makes the sudden shift to relentless cruelty, and the later discovery of Look’s corpse at the site of a Cavalry massacre of the Comanches, that much more shocking.

Tarantino’s ill-chosen words more or less force a comparison between his recent films and Ford’s. As brilliant as much of Django Unchained and Inglourious Basterds are, they strike me as relatively straight-ahead experiences—there is nothing in either film to de-complicate; by contrast, one might spend a lifetime contemplating The Searchers or Wagon Master or Young Mr. Lincoln (39) and continually find new values, problems, and layers of feeling. And while Tarantino’s films are funny, inventive, and passionately serious about racial prejudice, there is absolutely no mystery in them—what you see really is what you get. Within the context of American cinema, Django is a bracing experience . . . until the moment that Christoph Waltz shoots Leonardo DiCaprio, turns to Jamie Foxx, and exclaims: “I’m sorry—I couldn’t resist.” The line reading is as perfect as the staging of the entire scene, but this is the very instant that the film shifts rhetorical gears and becomes yet another revenge fantasy—that makes five in a row. Is revenge really the motor of life? Or of cinema? Or are they interchangeable? Or whatever, as long as you know what side you’re on?

If Waltz’s admission of the irresistible impulse to take vengeance on the ignorantly powerful is the key line in Django Unchained, the key line in The Searchers, delivered in the first third of the film, is its polar opposite. As Jeffrey Hunter’s Martin and Harry Carey Jr.’s Brad prepare to join John Wayne’s Ethan Edwards on his quest to find his nieces, Mrs. Jorgensen (Olive Carey) takes Ethan aside and pleads with him: “Don’t let the boys waste their lives on vengeance.” Ford’s film is about the toll of vengeance on actual human beings, while Tarantino’s recent work is about the celebration of orgiastic vengeance as a symbolic correction of history. Ford’s film has had a vast and long-lasting effect on American cinema, while the impact of Tarantino’s film has, I suspect, already come and gone. But then, Ford only had the constraints of the studio system to cope with, his own inner conflicts aside, while Tarantino must contend with something far more insidious and difficult to pin down: the hyper-branded and anxiously self-defining world of popular culture, within which he is trying to be artist, grand entertainer, genius, connoisseur, critic, provocateur, and now repairman of history, all at once. It makes your head spin. And one day in the future, I suppose he might find himself wondering just what he had in mind when he so recklessly demeaned one of the greatest artists who ever stood behind a camera.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Os oito imbecis
































O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência.
Machado de Assis, Aquarelas. 


1. 


Tarantino faz tão poucos filmes que numa carreira de mais de vinte anos estar diante de seu oitavo filme (fato orgulhosamente mencionado no início do filme, gerando a simetria entre os oito imbecis do título e os oitos filmes em sua carreira: há um filme para cada imbecil do título, só resta saber quem ficará com Jackie Brown, ainda o melhor trabalho de Tarantino, a considerável distância dos demais) é fato tão insólito que eu não soube inicialmente o que fazer disso. Filmografia magra assim se explica quando os filmes não rendem lucro, mas e no caso do Tarantino, popular desde seu primeiro filme? Numa entrevista ele explica isso falando que se considera diretor "de obra" e não de filme a filme, e que um filme ruim poderia ser prejudicial aos outros que pudessem ser bons. Ora, eu só sei que quando um filme é bom, ele é bom. Para além da petulância usual de Tarantino, vê-se que somente alguém muito inseguro de si e de sua habilidade defenderia tal estupidez. Isso explica os erros desse seu novo filme, talvez?

Se não explica, contribui para um melhor entendimento. Certos diretores, de fato, são artistas de "obra", mas isso porque alcançam uma certa dose de coerência que une seus filmes. Dois nomes me vem a mente, e dois que filmaram tão pouco quanto Tarantino e são tão distintos dele: Bresson e Cimino. Filmarem pouco não os põe em desvantagem em relação a, digamos, Hitchcock ou Ford ou Lang. Para além de interesses pecuniários, o que está em jogo é o posicionamento perante o trabalho. Uma pressão, uma urgência, um estado de espírito que perpassa todo o processo. Tanto Cimino quanto Bresson jamais filmaram um plano indigno, mas, sem a felicidade de poder filmar todo ano, não usufruiram da oportunidade de realizar, para além de obras primas, filmes menores, excercícios de grande interesse, ou, mesmo, as "obras primas doentes", uma obra, enfim, vasta, repleta não apenas de picos, mas de vales e declives, subidas íngremes, terrenos pedregosos; outras facetas a se explorar, ausentes quando se tem a curiosa desvantagem de se produzir apenas obras primas. Não raro, pode-se aprender mais com uma experiência malfalada, ou com um filme sabotado pelo estúdio, ou má escalação, ou o que seja, do que com um filme que tem a fraqueza de ser perfeito. Fritz Lang teve ampla liberdade de filmagem, e orçamentos generosos na Alemanha, mas seus filmes mais interessantes, me parece, saiu de seu trabalho espartano nos Estados Unidos.

Tarantino não se encontra em nenhum desses dois casos. Está em algum ponto entre eles. Seu ritmo de trabalho é lento, como o de Kubrick, por exemplo, mas não por algum escrúplo em particular na preparação de um filme, mas por insegurança. (Se há algum escrúpulo, algum preparo mais elaborado, eles não se mostram nos filmes, aí é caso de fracasso completo.) Por ser inseguro, não apenas se filma pouco, como se sente a necessidade de muletas, seja a estrutura em capítulos (que em Kill Bill até poderia ter alguma coerência, pois o filme se dava como uma série de televisão), seja o fetichismo do 70mm. Não é por acaso que seus melhores filmes sejam os mais despojados do glamour usual que ele costuma imprimir em seus recalques do cinema de gênero. Comparado ao que foi fazer depois, Jackie Brown é algo tão antípoda ao resto de sua filmografia que nos põe a pensar no que se passou entre esse filme e Kill Bill, e o que foi que perdemos com isso, qual foi o lado de Tarantino que perdeu-se de vista. Talvez tenha sido a novidade de ter trabalhado com material alheio, que o forçou a rotas diferentes das usuais, uma encenação mais ordenada e um olhar mais sereno, em lugar de seu maneirismo onanista e montagem truncada. Talvez fosse uma necessidade de compartilhar algo, tendo saído do sucesso estrondoso de Pulp fiction, que não fosse uma paixão, louvável em si mesma e bastante compreensível, pelo cinema e pelo fazer cinema, mas que fosse um amadurecimento, e um momento de ponderação sobre o que é superar uma etapa de uma vida, o que é envelhecer num mundo aonde não é mais viável envelhecer, o peso do que se deixa para trás, e quem se deixa para trás. Talvez fosse apenas uma etapa natural do processo de amadurecimento de um artista talentoso, um artista que ficara mais confiante em suas habilidades e forças, a ponto de entregar um trabalho de qualidades menos óbvias, um filme direto e sem circunlóquios, um filme mais aberto que os anteriores. Talvez, quando Jackie sai de carro da vida de Max e do filme que acabamos de ver, era o Tarantino que saía de Cães de aluguel e Pulp fiction, disposto a deixar esses filmes e o método que os criou para perseguir outras coisas. Teria sido um filme de transição, caso o Tarantino tivesse dado prosseguimento com o que parecia ser o rumo natural de sua carreira e abandonado seus macetes maneiristas. Em lugar disso, permance somente um grande filme, o único grande filme de sua carreira. Um desvio. Porque depois disso, Tarantino voltou-se, talvez a contragosto, ao que vinha fazendo antes, mas não sem regredir assustadoramente. O que era ruim tornou-se pior. O maneirismo é um esgotamento de formas, traço do decadentismo. São obras saturadas, de excesso. Tarantino consiste no esmorecimento desse escola, decadência da decadência. O primeiro plano de Kill Bill é o assassinato de Jackie Brown.



If you are making genre movies you cannot refuse to shoot the obligatory scenes: how do we get from A to B to C to D. But some directors feel that they are just boring parts because they are plot and who wants to hear about that -- let's get on with the stylistic business. It's great to be a stylist, and I really like that, but on the other hand you cannot refuse to pay attention to the conventions you are working with. Make a new form and be Fellini, but then don't try to be Don Siegel.
Brian de Palma.


2.

A história se passar numa cabana enterrada numa nevasca, e a presença de Kurt Russell, naturalmente me levou a pensar em O enigma de outro mundo. Não me surpreendi ao me deparar com uma declaração do Tarantino confirmando essa conexão. Indica a confusão mental que deu origem ao filme. Nada mais distante de Carpenter do que os procedimentos de Tarantino. Falta-lhe o compromisso para com o cinema de gênero. Carpenter não se importava em seguir a risca os preceitos desse cinema, talvez porque soubesse que é fácil superá-los e passar adiante para o que realmente importa. Diante dos mesmos problemas, Tarantino congela. A ele os clichês surgem como monstros assombrosos e o fazem esconder-se dentro da caverna sem saber que esse dragão é somente sombra e fuligem. Para Carpenter, esses clichês, esses preceitos, são tão-somente o contexto aonde se dá sua mise en scène, como a roupa que cobre o atleta que supera novas distâncias. Nisso, e talvez apenas nisso, se dá a semelhança de Carpenter com Hawks. Ora, para Tarantino, o que justamente interessa é a roupa, a aparência, e não a superação, e muito menos a distância. Para Carpenter, o mal é absoluto e invencível (com a possível excecão de They live). Para Hawks, nenhum problema é superior a um trabalho bem executado que lide com ele. Para Tarantino, nada disso importa: o que importa é que o trabalho seja extravagante e exuberante ao ponto aonde o problema inicial seja mero pretexto para que essa ação ocorra.

Nada menos hawksiano do que os personagens de Tarantino e as situações aonde se encontram. Todos os filmes de Tarantino são histórias de planos complicados demais para funcionar. Tomemos esse The hateful eight (que aqui no Brasil ganhou a traducão estúpida de Os oito odiados). Consiste em transportar uma prisioneira de ponto A para ponto B. Mas vem a nevasca do Colorado para atrapalhar os planos. Torna-se necessário ficar esse tempo na loja de secos e molhados da Minnie. Ah, mas não se pode confiar em ninguém. Temos aí o whodunnit em que consiste o filme. Quem, dos personagens que estão já na loja ou dos que vieram na diligência, está em conluio com a prisoneira, Daisy Domergue, para libertá-la de John Ruth, conhecido como "The hangman" porque nunca deixou um prisioneiro escapar da forca? Essa é a situação de Agatha Christie desse filme. O filme é a operação de John Ruth e do Major Marquis Warren para descobrir quem é o vilão que irá libertar Daisy. Operação duplamente inútil: todos que estavam na casa antes de sua chegada eram da gangue de Daisy, mais seu irmão que estava escondido no porão da casa, e todos irão morrer no tiroteio final, menos Marquis e o novo Xerife, que tratarão de devidamente enforcar a Daisy por ressentimento. Isso quem não fora envenenado antes e morreu vomitando as tripas para fora, da forma mais "tarantinesca" (um adjetivo odioso, porque revela não um código de conduta, uma ética, mas um inventário de cacoetes) o possível.

Inicialmente, fecham-se os núcleos. Temos o Kurt Russell e o Samuel L. Jackson, que representam o Norte, contra o Sul, do Xerife e do velho General rebelde (o filme se passa depois da Guerra Civil). Os outros personagens se mantém num estado de neutralidade nesse conflito Norte-Sul, que o papel de serem suspeitos lhe pede. Acorrentada no centro de tudo há Daisy. Temos a situação de Cães de aluguel, o personagem imóvel pelas circunstâncias e os outros procurando resolver os problemas que eles mesmo criaram. O que surge disso é a mesma coisa que há nos outros filmes: tudo é teatro, tudo é performance, desde o plano dos "vilões" (fingir que são trabalhadores na casa de secos e molhados, procurar convencer os demais disso, dispor dos elementos na cena, seja ocultar os traços de violência, seja manter o velho General vivo, "que dá um toque de autenticidade" à farsa toda) até a carta falsa de Abraham Lincoln, que o personagem de Samuel L. Jackson usa como um escudo. Não por acaso, o personagem do Kurt Russell é o primeiro a morrer: ele é o único que não esconde nada, o único que deixa claras suas intenções desde o início; é o único que se recusa a entrar no jogo. Daí sua genuína ofensa contra a mentira da carta do personagem do Jackson. Ora, se fosse Hawks, não haveria jogo de teatro algum: isso tudo seria distração do trabalho a ser excecutado, que deve ser claro e limpo desde o princípio. Em Hawks, quem tem algo a esconder, quem se recusa em jogar às claras, é sempre o primeiro a perder.

Mas é justamente esse teatro em que consiste o talento de Tarantino (não é por acaso que as melhores partes de Bastardos inglórios e Django livre sejam justamente as mais teatrais). Tarantino é um diretor de ação medíocre (a perseguição em À prova de morte é a exceção que confirma a regra). Já se falou em algum lugar, e concordo, que seu talento reside em criar esperas, criar momentos vazios (o mais belo desses momentos: Jackie, recém saída da cadeia, colocando The Delfonics para tocar, sob o olhar apaixonado de Max). É pena, então, que esse filme seja tão pobre em encenação. A ideia de dividir a loja em Norte-Sul é muito mal aproveitada. O filme, como tantos outros de nossa época, depende demais da continuidade intensificada. Talvez seja efeito da perda irreparável da ótima montadora Sally Menke. Talvez seja traço de envelhecimento precoce por parte do Tarantino. Nesse sentido, The hateful eight é um filme dividido. Parece haver o desejo de retornar à primeira etapa de sua carreira, à Cães de aluguel. Por outro lado, há ainda todos os cacoetes que Tarantino trouxe desde Kill Bill, os flashbacks que se prestam a explicar o que já sabemos (o flashback da história do Major Warren abusando o filho do General é o ponto mais baixo da carreira de Tarantino; é um procedimento meramente repugnante, mais ainda porque procura ser engraçado), a abundância de closes (que, diferente do que Leone fazia, não conseguem dar ritmo algum às cenas), a fotografia asséptica de Robert Richardson, os blood squibs exagerados, usados como contraponto cômico ao absurdo das situações, a inutilidade de quebrar o filme em capítulos.

Escondido debaixo disso tudo, parece haver ainda, lutando a duras penas uma batalha perdida, o jovem realizador de Jackie Brown. The hateful eight ainda é um filme melhor do que Django livre, o que não quer dizer muita coisa. Porque Tarantino não é, como Carpenter, um diretor de gênero. Não é, como Hawks, um diretor de ação. Não, o primeiro Tarantino, aquele de Cães de aluguel e Pulp fiction, vem de George Lucas e de Guerra nas estrelas: o retorno aos clichês heterogênios que se amontoam, um sobre o outro, de forma achatada, homogeneizada, pasteurizada. Uma série de símbolos desconexos. Jackie Brown foi o fim disso, uma tentativa malfadada (comercialmente), de mudar o jogo. Desapontado, Tarantino regrediu mais ainda. Esse segundo Tarantino, de Kill Bill em diante, é análogo à Family guy: um non sequitur de roupagens e clichês e símbolos de outrora, formulados como piadas de mal gosto (porque faltam-lhes critério). O western, como gênero, nada tem a ganhar com Tarantino, e Tarantino nada tem a ganhar com o Western. Mas Tarantino parece não ver isso, ou se vê, não se importa. Informa que quer somente fazer mais dois filmes e se aponsentar. Não é o cinema que perde com isso, mas sim Tarantino que sai perdendo.

Pós escrito: Bernardo Carvalho, no site do IMS, tem opinião de que falta um Tarantino no Brasil. Coisa estranha para se defender num país que largou Candeias e Sganzerla no ostracismo. O que temos mesmo é, infelizmente, tarantinos em abundância.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

American Movie Classic: John Carpenter

by Kent Jones


America doesn’t have so many great directors to spare that it can afford to letJohn Carpenter fall through the cracks. Should that come to pass, and it almost has, he’ll have the last laugh: the work will speak for itself. But how did he come to be so marginalized? The common wisdom is that Carpenterwent into a precipitous decline after the glory days of ASSAULT ON PRECINCT 13 and HALLOWEEN, but can anyone really back up such a snap assessment? Is there any other kind of assessment in current film culture? Examine his oeuvre carefully and you’ll realize that he has one of the most consistent and coherent bodies of work in modern cinema, in which the triumphs – those two early slam dunks, THE FOG, ESCAPE FROM NEW YORK, THE THING, PRINCE OF DARKNESS, THEY LIVE, and IN THE MOUTH OF MADNESS – far out-number the minor or problematic films. He’s never done anything to be ashamed of. He’s never made a dishonest film or even a lazy one. Even his Universal-ly ignored remake of VILLAGE OF THE DAMNED is beautifully crafted, with a brilliant opening 20 minutes in the bargain.

I would say that Carpenter’s marginalization is due to something less easily identifiable and much sadder, over which he has no control. Whether we like it or not, we attune ourselves to norms and paradigms in filmmaking as they shift like tectonic plates, making unconscious adjustments in our heads about how to watch films and see them in relation to one another. And without knowing it, many of us do something that we often revile in others: we make allowances for fashion. There is no doubt that the fashions of American cinema have shifted thousands of miles away from John Carpenter. He’s an analog man in a digital world, who measures his own work according to criteria of value that few people pay attention to anymore.

Carpenter stands completely and utterly alone as the last genre filmmaker in America. There is no one else left who does what he does –not Hill, notCronenberg, not De Palma, not Ferrara, not Dahl, not even Craven, all of whom pass through their respective genres with ulterior motives or as specialty acts, treating those genres as netherworlds to be escaped to, museums ready to be plundered. When we speak of genre films today, we are basically talking about a precedent set in Europe by Melville and Leone, standardized by Hill with THE DRIVER, banalized by Kasdan with BODY HEAT, and made into an artform by Tarantino a little over a decade later. In other words, the “meta-genre” film, which rose from the ashes of the genuine article after it was destroyed by the increasingly reductive economic structure of the business. Beyond late-night cable filler, genre exercises are now a matter of either cannily exploiting (Craven) or greedily satisfying (I KNOW WHAT YOU DID LAST SUMMER) the demands of young audiences. Most of the great genre films of the last twenty years –UNFORGIVEN, AFTER DARK MY SWEET, NEAR DARK, BLUE STEEL – are isolated gestures, just like everything else in American film right now. It’s a situation that effectively nullifies the give-and-take with an audience necessary for the survival of any genre. The one thread that everyone follows at the moment, the only common currency, is currency itself. Until the structure of the business changes, all other trends or tendencies will be nothing more than fodder for the Arts and Leisure section. The only other recent development, irony, already seems to be on its way out. In a moment when isolated gestures are proliferating, why not behave as Carpenter does, remaining content to work in the manner of an Ulmer or a Siodmak, whose artistry is focused on satisfying genre conventions and the demands of narrative, and whose loftier preoccupations are filtered through said conventions? Why not behave as though events like INDEPENDENCE DAY and INTERVIEW WITH THE VAMPIRE never happened, as though there were still a vast popular audience tuned to the niceties and subtleties available within genre formulae? Perhaps what makes Carpenter such an unpalatable figure for so many people is the fact that he came out of the same film school generation as Coppola and Scorsese with nary a trace of Europeanism in his work. Carpenter may be the only filmmaker who learned from auteurism, who benefited from it, and who ignored its key tenet of the director as central event, divorced from commercial and industrial considerations. There’s something moving and yet a little off about his humility, the sense that he truly relishes the image of the artist locked into a system, satisfying its demands and complying with its rules.

Paradoxically, it’s these historically obsolete, self-imposed limitations that have allowed Carpenter to stay true to himself. His patient, spatially precise, and exquisitely troubling films have a reclusive air about them, as though they were the work of a man who lived by the heraldic codes or the teachings of Epicurus. While his contemporaries have been endlessly mythicizing old stereotypes and, in the process, draining them of whatever juice they had left, Carpenter has been able to swim effortlessly from one bewitching generic variation to another. He understands that a genre amounts to more than its iconography, that it can transcend itself only when it sticks rigorously to its own rules. Which leaves him unable to do something as outrageously and thrillingly inflated as MILLER’S CROSSING, but then he’ll never have aHUDSUCKER PROXY, either. His recent VAMPIRES is an attempt to beatRodriguez and Tarantino at their own game, and in the process he cultivates something that is actually quite foreign to him: total mayhem. But even here, Carpenter sticks to his guns by making James Woods’s hunter into a sociopathic crusader with a band of followers who take evil at face value. In one sense, his films feel like pieces of scrimshaw or model schooners built in bottles – lonely, gorgeously solipsistic enterprises. In another sense, with the task at hand utterly precise and clear, he is able to communicate with his audience with a clarity that few of his fellow filmmakers can muster. Occasionally, as in THEY LIVE or IN THE MOUTH OF MADNESS, he is able to sneak in an act of subversion and speak more directly to contemporary affairs than anyone else in American commercial cinema. In other words, in the same spirit with which it used to be said ofEdgar G. Ulmer or Phil Karlson, John Carpenter is an auteur.

He is also the widescreen master of contemporary cinema. With the exceptions of DARK STAR and his terrific TV Films (ELVIS, SOMEONE IS WATCHING ME, and two episodes of BODY BAGS, the trilogy he produced for HBO), everything in his oeuvre from ASSAULT ON PRECINCT 13 (76) toVAMPIRES (98) was shot anamorphically, and the 2.35:1 aspect ratio is a shape that he clearly understands and feels at home with. Along with Minnelli in his Fifties melodramas and the Resnais of LAST YEAR AT MARIENBAD,Carpenter is one of the only filmmakers who bring the shape to life, just as the 1.85 aspect ratio becomes a living entity in Spielberg’s work and 1.33 does in Murnau and Lang. The Scope frame is often associated with deserts and windswept vistas, a matter of volume, value, spectacle, and touristic epic sweep. Not to deny David Lean his place in history, but in comparison toCarpenter his “immaculate craftsmanship” is alienated and plodding – Alma Tadema to Carpenter’s Homer.

One of the glories of Carpenter’s oeuvre is watching the thrill he gets out of adapting the Scope frame to a variety of topographies and climates: the blankest, most desolate urban wasteland at night (ASSAULT ON PRECINCT 13); the tree-lined streets of a small Midwestern town (HALLOWEEN); the luminous beachheads and rolling hills of coastal northern California (THE FOG, VILLAGE OF THE DAMNED); the snowscapes of British Columbia and Alaska standing in for Antarctica (THE THING); the inside of a dank, dilapidated church (PRINCE OF DARKNESS); the saddest, most pathetic sections of L.A. (THEY LIVE); the monied sections of San Francisco (MEMOIRS OF AN INVISIBLE MAN); the reddish, sun-parched flatness of the Southwest (VAMPIRES). STARMAN, the most thematically maddening film Carpenter ever made, might also be his most sheerly beautiful. Supposedly an act of atonement for his starkly frightening, commercially disastrous remake of THE THING and one of his biggest hits, STARMANfeels like a piece of New Age hokum fifteen years after its release. 

But it’s also a serenely concentrated road movie, a child’s vision of America at night without the Spielberg glow, from the rolling greenery of Wisconsin to spacious western truck stops to the hushed, gorgeous light of Arizona. The revolting plot mechanics are almost redeemed by Carpenter’s very private sense of decorum, in which the action of any scene is carefully filtered into the visual tone of the setting and the overall arc and pace of the film: he never spotlights an actor or an object within the frame for any longer than the pace will allow, and one is always left with the impression of a field of interlocking actions rather than prized moves or compositions. Carpenternever attempts the kind of exploratory, digressive moves within a scene that were the hallmark of his hero and alleged role model, Howard Hawks. And the lack of relaxation and breathing room can get a little oppressive at times – particularly in ASSAULT ON PRICINCT 13, where the action is preternaturally straightforward and the acting almost nonexistent. But inSTARMAN his extreme economy offsets the gooey mid-Eighties modishness, while said economy is in turn offset by the charm of Bridges's precise awkwardness and Allen’s wide-eyed beauty. And Carpenter doesn’t cheat in an area that most directors would have whimsically fudged their way through: when the alien arrives in Allen’s house, she is genuinely terrified at the possibility that she is face to face with real evil.

STARMAN actually contains one of the most beautiful passages inCarpenter’s oeuvre. After Allen’s Jenny has been shot, the alien carries her away to a mobile home that is being driven west. He works his healing wonders, all acted without a shred of sanctimoniousness by Bridges.Carpenter cuts with equal measures of discretion and rapture to landscapes of muted, almost austere beauty as the truck passes through them and night gives way to morning.

The scene is fairly typical of Carpenter: ingeniously calibrated and rhythmed, nicely textured, with a strange coordination between people and inanimate objects. It’s the sweet flipside of the presence of evil on Halloween eve in Haddonfield, Illinois, signaled through the sudden appearance of a partially hidden figure in the corner of the Scope frame, or a slight pan that makes the frame’s edge into an unexpected locus of fear.

HALLOWEEN, still Carpenter’s biggest moneymaker, looks more impressive with each passing year: a perfectly coordinated succession of counterpoints between slow lateral tracking movements, subjective forward moves via the Panaglide, and sudden vertical jolts within the frame (the killer jumping onto the car, lifting up the hunky boyfriend), in which every object and every street-corner is perfectly described, the human action serving as a form of punctuation. In fact, much of Carpenter’s cinema is close to a realization of the dream of directors in their dotage like Fuller and Fellini, who wanted to make films about objects, devoid of people.

At his most comfortable with deadline structures and severely fixed passages of time (Snake Plissken has 24 hours to get out of New York and L.A., Michael Myers has to be found before Halloween night is over, the Starman has to get back to Winslow, Arizona, to meet his fellow aliens, the PRINCE OF DARKNESS team has only a small window of opportunity to keep the devil out of this world), Carpenter has a tendency to turn every space into a grid (or, in IN THE MOUTH OF MADNESS, the accumulation of spaces throughout the film). ASSAULT ON PRECINCT 13 might be the most severe action movie ever made. The severity of the design is so extreme that it takes on a real purity, never more so than during the extraordinary shootout that climaxes with silenced bullets quietly hitting glass, venetian blinds, and, most bewitchingly of all, stacks of bureaucratic paper sent flying through the air (there’s something deeply satisfying about the “ptt-ptt-ptt” sound the bullets make as they strike). ASSAULT is supposed to be inspired by RIO BRAVO, to which it bears the same kind of relationship as a Di Suvero sculpture does to Van Gogh’s sunflowers. Homage becomes abstraction, and an entirely new object is created in the process. Nothing could be further from Hawksthan this expertly mechanized standoff between the ragtag, makeshift band that assembles under the banner of good and the shadowy, perfectly synchronized, seemingly endless army of pure evil, a sudden threat that materializes out of nowhere and leaves its first and most lasting impression with the sudden shooting of a little girl eating an ice cream cone.

Anyone who’s seen the film will never forget this moment, which is immediately branded on your consciousness. Everything about the scene is clear to the point of transparency: the plot mechanics, the horizon lines of the ghetto at dusk, the heavily singularized acting, the evenness of the pace (and of Carpenter’s typically spare synthesizer score), and the quiet burst of the gun with its long silencer held by a languorously extended arm, quickly followed by the sudden bloom of red on the girl’s chest and the blank surprise on her face as she crumples to the sidewalk. There’s something uniquely disturbing about ASSAULT, with its blunt opposition of moves and countermoves. The film has the undiluted force of a terse, savage two-note guitar break. It’s an odd starting point (DARK STAR being a kind of false start, filled as it is with Dan O’Bannon’s high school prankishness, but an ingenious film nonetheless), and its punishing concentration appears to originate from something mysterious, troublingly personal. Why create such a blunt instrument? It’s easy to see why ASSAULT was rejected by American audiences on its first release: Carpenter needed the human ballast of Jamie Lee Curtis, the mature Kurt Russell, or the total-pro hamminess of Donald Pleasence. THE THING, PRINCE OF DARKNESS, and, to a slightly lesser extent, VAMPIRES also move in this stripped-down direction. They share a tone unique in the cinema: hermitlike, unadorned, genuinely terrifying, and genuinely terrified.

Cocteau advised all artists to happily imitate their masters, which would eventually open the door to personal expression. It’s a fascinating lesson to study Carpenter and his Hawks fixation, his use of groups “tough women,” and task-oriented action, and then to realize how far apart the two directs are. If there’s any filmmaker that Carpenter resembles at all, it’s Jacques Tourneur. Both are genre filmmakers with an innate sense of visual beauty that saves even lesser films, like ANNE OF THE INDIES or BIG TROUBLE IN LITTLE CHINA; acting is low on the totem pole for both of them; both are temperamentally fixed on the perfection of an exact tone or line – inTourneur’s case it’s laid over the action, while in Carpenter’s case it’s blended into it. But whereas Tourneur cultivates the supernatural and is preoccupied with the mystery of drives and impulses (Simone Simon’s longings in CAT PEOPLE, Mitchum’s self-destructive attraction to Greer inOUT OF THE PAST), Carpenter is one of the few modern artists whose subject is the contemplation of true evil, or to be more precise, the stance that people take when they come face to face with true evil. Among the most tiresome contemporary clichés is “the banality of evil,” the idea that it exists within all of us and can be sparked by random events – thus the serial killer as object of God-like veneration. For Carpenter, evil is horrifying enough even if it’s outside of us; his characters never court evil, but simply recognize it, which is the moment of absolute horror. His films are filled with moments of paralyzing immobility, of dry-mouthed discomfort brought about by the realization that there is something new and awful in the world. It’s completely foreign to Hawks, where all the energy goes into the beauty of people in action, and the conflict is nothing more than a useful MacGuffin (although it’s very close to Marlowe’s contemplation of Canino in THE BIG SLEEP). InCarpenter, there is a unique mixture of dread and awe, followed by the time taken to sort out the two and muster up self-preservation.

This is one of the many reasons why THE THING is so vastly different from the Hawks original. Even Carpenter’s admirers had a tough time with the aggressive presence of the Rob Bottin/Albert Whitlock special effects in that film, but what makes the effects resonate is the care given to the individual reactions as the Thing undergoes its transformations, and as it becomes clear that it could become anyone at any time (the very un-Hawks-like idea that Carpenter retained from the original story). Even David Clennon’s exclamation of “You’ve gotta be fucking kidding me!” as he sees his former comrade’s head sprout insect legs plays less like a one-liner and more like the spontaneous reaction to something hitherto impossible in reality. THE THING now looks like one of Carpenter’s best films, easily the winner of the early-Eighties mutating-carcass competition. And it occupies a special place in his oeuvre for the sensitivity of its ensemble acting, albeit geared in one heavily singularized direction.

The many forms that evil can take, the many places in which it can appear, the infinite ways in which it can announce itself, the ease with which it can blend into the rhythms and atmospheres of everyday life – this is Carpenter’s focus, and the moral clarity that he brings to that focus is what makes him a great director. Adrienne Barbeau’s slow walk down the stairs to her lighthouse radio station, with its odd sensation of reality peeling away its skin, in THE FOG; a reanimated zombie standing before a mirror, in PRINCE OF DARKNESS, and shivering with a nameless, inarticulate longing for what lies on the other side; the world suddenly turning blue at the will and ease of a demonic novelist, in IN THE MOUTH OF MADNESS – these are moments unlike any others in American cinema, where the balance between legibility and fluidity, between the real and the ir-real, is perfectly achieved and held.

The political side of Carpenter’s cinema grows directly out of his contemplation of evil. The liberal credentials of ASSAULT, THEY LIVE, and the two ESCAPE movies have been called into question by some critics, but strict political interpretation is always a losing game when you’re dealing with genre filmmaking. For me there’s something so powerful about the concrete fact of urban desolation in those films – an expressionist construction in the two ESCAPES (New York in particular has some of the clean, graphic power of the late-silent Lang) and a piercing reality in ASSAULT and the absurdly neglected THEY LIVE. What a shock it was (and still is!) to see Reagan’s America confronted head-on in a low-rent sci-fi epic staring Rowdy Roddy Piper. The premise of THEY LIVE – that aliens are hiding behind human masks, enslaving America with subliminal messages and can only be detected with special glasses that are being distributed by subversive cells around the country – is pretty close to Romero without the excess, a provocative metaphor for a thinly veiled reality. But what really makes the film so affecting is its feeling for the acrid tastes and smells of life on the margins, its boisterous physicality (yes, that is the longest fight scene in movie history between Piper and Keith David, with his terrific slow burn sneer), its sense of hollow, lapping desperation, its sad prole poetry. Who else had the cunning, the compassion, the ingenuity, and the efficiency to fashion an ode to the working class during such a rock-bottom, sickeningly cheerful moment in American history? Similarly, the metaphor for media saturation and paralysis in IN THE MOUTH OF MADNESS (the books of a King-ish writer named Sutter Cane literally drive people insane) seems a bit straightforward simply taken on its own. But the way Carpenter delineates the experience of going mad, in which a world seen through long lenses keeps ripping away its cheap surfaces to reveal more cheap surfaces underneath, is a brilliant feat of low-budget engineering and a very disturbing encapsulation of the experience of living amidst so many media and their endless supply of product. 

Forget the frequently adolescent sensibility that finds its outlet in BIG TROUBLE IN LITTLE CHINA, ESCAPE FROM L.A., and VAMPIRES. Forget the occasionally clunky orchestration of parallel events. Forget the variable success of the special effects – for every STARMAN or THE THING, there’s an ESCAPE FROM L.A. with its computer-game landscapes, aPRINCE OF DARKNESS with its zombies trundling down the street, or an IN THE MOUTH OF MADNESS with its rubber monsters (although in that film the cheesiness of the monsters is part of the subject, and is almost overcome by the tautness of the conception). Forget the frequently monotonal characters and acting. Allowances are constantly being made for enshrined directors like Aldrich, Karlson, and Fuller, whose inconsistencies and weaknesses are forever being papered over and reconstituted as “idiosyncrasies,” or strengths. Why not make the same kind of allowances for this modest filmmaker who carries the phantom (and perhaps illusory- camaraderie and selfless devotion to the public of the Golden Age of Hollywood in his head? His devoted fans excepted, Carpenter is indeed a bum in America, on the one hand damned for being modest and on the other damned for not being modest enough. But if auteurism taught us any lessons at all, it’s that modesty and ambition, prose and poetry, the concrete and the abstract, can walk hand in hand in the least likely places. A paradox. This relic, so self-contained, so respectful of the rules that his elders were obliged to play by, makes films that are often more acutely intelligent than anything his less constrained contemporaries can manage.

Another American solitary, falling out of fashion but carefully guarding his integrity like a dusty old treasure.

Film Comment, Janeiro/Fevereiro, 1999.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Um homem célebre

- Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: - Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

- Diga, minha senhora.

- É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

- Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

- Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.

- A bengala.

- Mas parece que hoje chove.

- Chove, repetiu Pestana maquinalmente.

- Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

- Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

- Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, - ou por alusão a algum sucesso do dia, - ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.

- Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.

- Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.

- E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil...

- As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

- Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.

- Vai casar com uma viúva.

- Velha?

- Vinte e sete anos.

- Bonita?

- Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, - mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

- Acaba, disse Maria; não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.

- Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, - uma clara e fresca manhã de maio de 1876, - eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.

- Para quê? dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

- Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?

- Nada.

- Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

- Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

- Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.

- Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

- Adeus.

- Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

Machado de Assis.