sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Aquilo a que chamamos cultura tornou-se um território ilimitado. Tudo, ou quase tudo, se tornou cultura, a não ser que fiquemos por uma definição mínima: a herança canonizada pelas instâncias tradicionais de legitimação, o património legado pelas artes, pelos saberes e por certas tradições. Aquilo que define a noção de cultura, no nosso tempo, é a sua plasticidade e o seu carácter elástico. A esfera cultural tornou-se pan-inclusiva e tem uma infinita capacidade agregadora e de homogeneização. A culturalização global da vida coloca num mesmo regime a promoção dos vinhos do Dão e a literatura contemporânea, os sabores da gastronomia regional e os saberes da poesia, a arte alentejana dos chocalhos e a arquitectura gótica. Neste mundo pan-cultural, governa a lei da indiferenciação. De tal modo que a questão já não é “como defender a cultura?”, mas antes “como defendermo-nos da cultura?”



Defendermo-nos da cultura, da democracia cultural, é resistir a forças perniciosas. Em primeiro lugar, é resistir à pura e simples integração da arte e da literatura na cultura, não permitindo que elas se tornem dispositivos de pacificação e de redução das tensões. Adorno, na sua Teoria Estética, desenvolveu a noção de Entkunstung, um neologismo bizarro que pode ser traduzido, literalmente, por “desartificação”. Este conceito tem, em Adorno, uma dimensão polivalente. Um dos seus sentidos é a progressiva dominação da “indústria cultural”. Mas o problema não está apenas, nem principalmente, aí, onde a crítica da cultura de Adorno o identificou. Em primeiro lugar, a questão não é tanto a das formas degeneradas da “cultura de massa”, mas o princípio fundamental de indiferenciação e de homogeneização como operador essencial da normatividade cultural. Em segundo lugar, a expansão ilimitada da cultura é ao mesmo tempo causa e efeito da retracção da esfera política, é um extermínio doce da política e, portanto, um dispositivo central da despolitização. Em suma: é uma anestesia, exactamente o contrário do que deveria ser. 

António Guerreiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário