quarta-feira, 29 de julho de 2015

Uma palavra sobre a autoria

Os textos publicados aqui de outros autores serão devidamente indicados como tal; os que não são assinados são do autor desse blog.

Um filme esmagador

Jorge Luis Borges:


Cidadão Kane (cujo título na Argentina é El ciudadano) tem ao menos dois argumentos. O primeiro, de uma imbecilidade quase banal, quer subornar o aplauso dos mais distraídos e é formulável assim: Um vão milionário acumula estátuas, hortas, palácios, piscinas, diamantes, veículos, bibliotecas, homens e mulheres; à semelhança de um colecionador anterior (cujas observações é tradicional atribuir ao Espirito Santo), ele descobre que essas miscelâneas e pletoras são vaidades de vaidades e que tudo é vaidade; no instante da morte, ele almeja um único objeto do universo, um trenó devidamente pobre com o qual na sua infância brincou! O segundo argumento é muito superior. Junta à lembrança de Koheleth a de outro niilista: Franz Kafka. O tema (simultaneamente metafísico e policial, psicológico e alegórico) é a da investigação da alma secreta de um homem, por intermédio das obras que construiu, das palavras que pronunciou, dos muitos destinos que rompeu. O procedimento é o de Joseph Conrad em Chance (1914) e do belo filme The power and the glory: a rapsódia de cenas heterogêneas, sem ordem cronológica. Esmagadoramente, infinitamente, Orson Welles exibe os fragmentos da vida e do homem Charles Foster Kane e nos convida a combiná-los e a reconstruí-lo. As formas da multiplicidade, da inconexão, são abundantes no filme: as primeiras cenas registram os tesouros acumulados por Foster Kane; em uma das últimas, uma pobre mulher luxuosa e sofredora brinca no chão de um palácio que também é um museu, com um enorme quebra-cabeças. No fim compreendemos que os fragmentos não são regidos por uma unidade secreta: o abominado Charles Foster Kane é um simulacro, um caos de aparências. (Corolário possível, já previsto por David Hume, por Ernst Mach e por nosso Macedonio Fernández: nenhum homem sabe quem é, nenhum homem é alguém.) Em um dos contos de Chesterton — The dead of Ceasar, acho — o herói observa que nada é tão aterrorizante quanto um labirinto sem centro. Esse filme é exatamente esse labirinto.

Todos nós sabemos que uma festa, um palácio, uma grande empresa, um almoço de escritores ou de jornalistas, um ambiente cordial de franca e espontânea camaradagem são essencialmente horríveis; Cidadão Kane é o primeiro filme a mostrá-los com alguma consciência dessa verdade.

A execução é, em geral, digna desse vasto argumento. Há fotografias de admirável profundidade, fotografias cujos últimos planos (como nas telas dos pré-rafaelitas) não são menos precisos e pontuais do que os primeiros planos.

Atrevo-me a suspeitar, porém, que Cidadão Kane perdurará como "perduram" certos filmes de Griffith ou de Pudovkin, cujo valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se resigna a rever. Sofre de gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial, no sentido mais noturno e alemão dessa má palavra.

[Sur, n. 83, agosto de 1941, trad. Laura J. Hosiasson, recolhido do livro Borges em/e/sobre o cinema, Iluminuras, 2000] 

domingo, 26 de julho de 2015


As espécies que herdarão esse planeta talvez façam as mesmas escavações que fizemos para determinar a idade da Terra e encontrar fósseis e talvez encontrem os nossos fósseis, que não serão os nossos, mas das máquinas que deixaremos para trás, e talvez essas espécies chegarão à conclusão de que nós fomos máquinas.


sexta-feira, 17 de julho de 2015

Abismu

Segue um texto do amigo Marcelo Ribeiro:























“Abismo” é um filme tão melancólico quanto “Signo do caos”, feito durante época de ruptura para o diretor (inclusive, é posterior ao “insucesso” de mercado da Belair). 

“Abismo” é uma excelente pista para quem quer entender o desculpismo que reina em relatos que isentam diretores em relação à responsabilidade sobre os filmes que não fizeram. Sganzerla sabe que os filmes feitos são postos em igualdade aos que não foram feitos, sua carreira é demarcada em muitas situações por isso (assim como a de Welles). A falta de comprometimento com uma identificação estilística – de futuro – é possível devido ao limite material que restaurou a carreira de Sganzerla após o exílio; incômodo e benefício que Sganzerla, pelo que tudo indica em seus textos, “teve” de viver até o fim. Esse “teve” pode ser obrigação ou também: única opção ética possível. “Abismo” assim como “Signo do caos” tem cara de último filme por que lida com uma opção ética sem volta e sem continuação; o último filme é a única e última opção que cabe ao diretor fazer quando resolve filmar algo onde a ética é um ultimato. 

Cinematograficamente o filme se realiza de modo comum, porém ao se invocar o prosseguimento de carreira (jurisdição do cinema moderno – responsabilidade de futuro) no sentido de transformação retórica dentro de um comprometimento temporal “Abismo” não se mostra como discurso. Pelo contrário, os sons de guitarra brilham dentro de uma montagem amarga, o amontoado consciente de Sganzerla não resiste à opressão (as críticas do fim da década de 70 demonstram a mesma amargura, porém, agora como desistência). Contudo, o brilhante de “Abismo” está exatamente nisso, mesmo com o desestímulo, a cabeça alimentada pela câmera encontra um ritmo apaixonado e um fim de uma carreira que daria certo. “Abismo” é bom porque Sganzerla desiludido se despe do seu “cinema novismo” e esquece o relevo; filma a relação do que se vê num filme: um monte de coisas vividas que formam planos, a mundanização do cinema de Sganzerla em “Abismo” ultrapassa a carreira possível para ele – do gênio. O melancólico centro da abdicação do conhecimento descritivo do instituir está (e nunca ganhou) em combate com a impossibilidade de fazer um cinema realizável, de mostrar um filme para alguém, o que não é sinônimo de filmar para alguém ver. O solto do filme é a construção de um laço potente de futuro irrealizado, ilegível situado para mundanizar o cinema com suas esperanças metodológicas constituintes de um fundamento simplesmente não-cronológico, e já há bastante tempo, antevisto pela necessidade de sobrevivência – pelo direito de filmar construindo o que lhe vem, corrói para fora.

“Abismo” comprova que o fato de Sganzerla estar no centro de convergência de um cinema de figuras de força social não quer dizer que seu fardo de testemunha deva lhe forjar socialmente como cineasta que continua a vida. “Abismo” não tem o situacionismo do relato que forja o cineasta do infortúnio e da esperança dos primeiros filmes. O cinema moderno se mostra como mais um dos variados satélites da idolatria social e Sganzerla sabe disso. Uma proposta na mesa extraída do medo de unidade, talvez seja essa uma boa definição para o cinema moderno determinado em cumprir o projeto de fazer filmes que façam o enfrentamento entre artista e o mundo. 

Pouco se sabe quando se evoca “efetividade” de um filme no mundo, filmar movimentos traduzidos de sentimentos literários e quase que o mesmo que explicar o filme feito. O diretor de “Abismo” já é um diretor que decupa sem tensões, cinematográfico, pois já sabe onde a luz surge, luz muito própria à felicidade e falta de vontade em recuar que Welles ensinou. 

O filme flexiona causas sobre a localidade e seus desdobramentos na potência, o argumento trata de lidar com a questão que paira sobre qualquer vontade de instituição (é dual), é um filme feito sem antielitismo que não persiste no contato singular entre a base linguística e o corpo a corpo que fricciona um dom até torná-lo maior que o cinema (não se preocupa em permanecer). “Abismo” assim como os filmes de Shakespeare de Welles me parece uma forte luz para fora da cacofonia do cinema moderno. A montagem dos planos deve fortalece uma identidade viva de se ter consciência da postura e o som não pode ser desculpa para não pensar.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sobre trailers e reações

























1.

Que cinema é coisa de paixão, e que essa paixão pode tomar a forma de favoritismo, isso já se sabe, desde os tempos da Photoplay. O espantoso é a dimensão que a coisa tomou, em particular com o advento da internet. Algum imbecil da objetividade poderá afirmar que isso ajuda a vida dos estúdios e dos realizadores, podendo ter nisso um termômetro da expectativa e reação do público, contribuindo para melhores filmes. Ledo engano: o público é monstro de mil cabeças mesmo, e ao estúdio pouco interessa um bom filme, interessa um bom produto, mas isso já é afirmar o óbvio. Operação diferente da de Dickens, que pesquisava o que o público sentia sobre seus folhetins, e levava isso em consideração ao continuar a história — coisa que se pode fazer quando se gasta somente tinta e papel. 

2. 

A ideia que move esses eventos paquidérmicos é a do buzz, um ruído incessante, alienante e anestesiante. O velho boca a boca do cinema foi cooptado pela publicidade. Realizadores e vedetes promovem o filme e o falso senso de proximidade com seu público. O ato de realizar o filme foi embelezado e conformado à estética making of. Tudo parece acessível ao público, mas não poderia estar mais distante. O talento dessa máquina é fazer parecer com que o filme tenha sido feito somente para você  — o fã, aquele que se alimenta incessantemente do produto, a base da pirâmide — e que suas preocupações e concepções sobre o que um filme sobre super-heróis (que é a bola da vez) deve ter, e ser, foram levadas em consideração. Isso se dá com qualquer forma seriada de ficção. O espantoso é o refinamento da máquina. Não há mais cortina que separe o pequeno Mágico de sua imagem verde e ampliada, mas as Dorothys e Homens de Lata e Leões Covardes e Espantalhos se contentam apenas com o holograma e se dão por satisfeitos com a imagem apaziguadora. 

3. 

Se faz necessária a falsa polêmica, para que o filme crie para si um senso de importância inflado, auto-suficiente e que o justifique intelectualmente. Qualquer camiseta serve, desde que neutralize a polêmica, seja racismo, feminismo, luta de classes. Nos filmes do Nolan foi a guerra ao terror. (Coisa bem estranha, pois o Batman sempre me pareceu um xerife de faroeste, tendo em Henry Fonda de Paixão dos fortes um modelo). À isso, oponho um filme como They live, aonde a crítica à reaganomics em particular, e ao neo-liberalismo em geral, é parte integrante e orgânica do argumento: ela vem das coisas filmadas, em lugar de filmes que impõem uma mensagem às coisas filmadas — o que é procedimento da publicidade. 

4.

O trailer é essa pedra de toque entre os realizadores (no sentido bressoniano, no caso do Snyder) e público. Atira-se para todos os lados, se tenta satisfazer todos os demográficos, que é empreitada insensata e dedicada ao fracasso (como a do personagem do Mastroianni em Oito e meio). As imagens desconexas se acumulam, permeadas de lugares-comuns ("luz contra as trevas") — tudo dedicado à pacificar os fãs, que sobrevivem à uma dieta de inutilidades viciantes — notícias como "veja o set de filmagem", "novas fotos promocionais", declarações cuidadosamente selecionadas. Esses próprios fãs tratam de analisar o trailer e outras notícias e factóides, sem saber que estão desempenhando um papel muito bem programado pela máquina publicitária. 
— E quem sai perdendo nisso tudo é o cinema e o espectador. O filme se segura por assuntos fora do filme — se tal história dos quadrinhos foi usada, qual encarnação do personagem foi a inspiração principal, comparações inócuas entre as outras adaptações, e, principalmente, se ator X ou atriz Y é ou não é a pessoa mais indicada para tal personagem — discussão que é o cúmulo do fricote do fã, pois nessa discussão a coisa que menos importa é a prestação do ator ou da atriz, mas sim o gosto particular do fã que critica o ator ou atriz, um gosto deslocado de qualquer assunto ao qual o cinema toca (pelo menos enquanto arte, enquanto fato social o assunto é outro).

5.

Por final, o problema principal é o direcionamento da série (coisa da qual o Zack Snyder é apenas uma das partes envolvidas; ele é apenas um dos problemas). Filme de comitê não costuma dar em coisa boa, muito mais tendo o Snyder — que é o Peter Greenaway dos filmes de ação, isso é, um publicitário — como diretor.  




sexta-feira, 10 de julho de 2015

Listas são uma boa maneira de se passar o tempo e encher linguiça num blog. Aqui vai uma, aquela de melhores filmes, que serve somente para o dia de hoje:


  1. Play time, Tati.
  2. Um condenado à morte escapou, Bresson.
  3. Aurora, Murnau.
  4. Bom dia, Ozu; My darling Clementine, Ford
  5. Esse obscuro objeto do desejo, Buñuel.
  6. You only live once, Lang.
  7. Starman, Carpenter.
  8. A rua da vergonha, Mizoguchi.
  9. Monkey business, Hawks.
  10. Year of the dragon, Cimino; Carlito's way, De Palma.

terça-feira, 7 de julho de 2015


Não se estranha que Charlie tenha uma vida tão boa, uma bela mulher, um bom emprego aonde é respeitado. Não se estranha que a mesma bela mulher o largue por um chofer negro e anão (comédia também é criar tipos pitorescos). Estranha-se que esse anão negro seja na verdade um cientista em pesquisa de campo. Não se estranha, portanto, que os filhos dessa bela mulher sejam trigêmios do anão negro, nem que essa bela mulher irá abandonar Charlie. Não se estranha que sejam os trigêmios desbocados, irônicos, falem palavrões, gíria, etc. Estranha-se que esses trigêmios negros sejam gênios da física.


E por que não o poderiam ser? É aí que entra o gênio dos Farrelly: por que haveria o mundo de se organizar e se submeter à nosso olhar viciado? Eles compram a briga, não por fugir do esteriótipo (o que pode criar novos esteriótipos) mas, justamente, por insistir nele.


Porque nos seus melhores filmes os Farrelly não criam tipos bizarros para que se ria deles mas sim para que se revele a boçalidade em qualquer esfera econômica e social e de poder; sua máxima é aquela que Borges divisou para Melville “Basta que um homem seja louco para que o universo inteiro o seja”.

sábado, 4 de julho de 2015

Sobre pequenos objetos

Pode um filme inteiro estar contido em um objeto de cena? Um filme como o Cidadão Kane, de Welles? Mas é justamente isso que ocorre — o filme inteiro é aquele globo de vidro que Charles Foster Kane tem na mão, segundos antes de morrer. Pode-se olhar para ele por qualquer ângulo que se desejar, mas jamais se entrará naquela casinha perdida no meio da neve e do tempo. E quando ela quebra — tendo escorregado pelos dedos moribundos de Kane, coincidindo com o instante de sua morte — a água que mantinha esse tempo suspenso, se liberta e retorna ao cosmos, não podendo, jamais, ser contida novamente. Resta a nós somente contar os cacos.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

No cinema há autores. Pode acontecer desse autor não ser o diretor, naturalmente. (Esse é um problema de quem confunde política dos autores com teoria do autor). Um ator talentoso pode imprimir seu ritmo particular ao filme, pode ser a força que impulsiona o filme. (Um exemplo recente desse fenômeno "diretor-nulo-filma-ator-autor" pode ser O lutador, de Mickey Rourke, ou os filmes de ação do Liam Neeson). É o caso de Jerry Lewis, e foi o caso de Eddie Murphy.

Digo que foi o caso pois um filme como O grande Dave não faz justiça ao ator que fez Trocando as bolas (uma digressão: John Landis parece um especialista em trabalhar com gente difícil, foi o Michael Jackson, o próprio Murphy, John Belushi...).

Fui assistir Um tira da pesada. Desconheço os outros filmes do Martin Brest. Sei que fez Perfume de mulher, que, de reputação, parece ser a antítese do que Axel Foley representa.  Me parece que qualquer pessoa poderia ter dirigido Um tira da pesada. O filme claramente pertence ao Murphy.

Axel Foley é um bom policial negro de Detroit. É um pé de chinelo, quase que por opção. Vive em enrascadas, tanto com a polícia reacionária e com os criminosos. Morre um amigo seu e ele vai a Los Angeles investigar, no lugar mais branco do mundo, Beverly Hills.   

Mas Axel não é burro. Engana a todos os brancos que o querem rebaixar. Se o jogassem uma banana, ele não começaria uma campanha fraudulenta como "somos todos macacos", mas, como o faz no filme, a usaria para sabotar os imbecis. Seu humor sarcástico atravessa o filme e as condições sociais que tentam rebaixá-lo.

E é lá pelo meio do filme que me ocorreu: esse humor sarcástico do personagem só pode ter vindo de quem sente na pele o racismo e a boçalidade dominantes. De quem se endurece e trabalha o humor como arma. Aqui o humor está em sua forma plena. Ele contesta as estruturas, as desarma e as desestabiliza. Eddie Murphy ri de tudo e de todos. Mas é inclusivo esse humor. Ele convida qualquer um a entrar na baderna, forma amizades, desmascara hipocrisias. No final, quem não ri, quem é imune a esse humor, é vilão.

Enquanto houver o racismo, haverá também os Eddie Murhpys e os Richard Pryors para lavar a alma daqueles que sofrem, e para desmascarar os hipócritas e otários.




Double bill



Esses últimos textos são mais antigos. O conto já estava publicado na revista (defunta?) Punctum. 
Agora segue o jogo.

O gigante

Havia um gigante encerrado entre os muros da cidade. Era a praça central onde ele cochilava, respirando, e o tráfego próximo a ele era interditado devido a inúmeros acidentes automobilísticos decorrentes da respiração do gigante.

Dado o seu tamanho, inúmeras correntes o prendem à cidade. Em geral, as correntes se dispõem de forma tal a seguir o desenho de artérias e veias, com uma corrente maior que termina num sem fim de menores correntes. Essas menores correntes podem ser manejadas, e certamente já o foram por crianças, enquanto as maiores tiveram auxílio internacional apoiado pelas organizações aduaneiras de comércio livre…

O gigante sempre está a dormir, e os mais antigos não conseguem se lembrar se já o viram acordado por mesmo que seja um instante mais brusco entre dois sonhos. De tempos em tempos, canta o gigante em uma voz mansa e embala o sono da cidade e facilita o trabalho dos leiteiros e das moças-da-noite. Os mais antigos dizem que o gigante foi trazido devido a sua voz que canta em nenhuma língua específica, mas em murmurejos da água do rio, dos ditames do vento, da métrica da chuva. Mas o gigante apenas canta enquanto sonha, e seu sonhar é de períodos inconsistentes com por vezes longos intervalos entre eles. De fato há pessoas que dizem jamais ter ouvido o canto do gigante e afirmam que é impróprio encarar o gigante como um fato já estabelecido e julgam sequer haver um gigante ou que esse gigante já morreu e suas correntes que se espalham nas mais variadas direções e em todos os cantos da cidade e servem como esqueleto de diversas construções apenas permanecem por respeito a uma história passada que definha na memória dos antigos. Entretanto, quem mais admira e aprecia o gigante são as crianças. Naturalmente, é impossível aproximar-se do gigante mas as crianças gostam de esperar pelo seu canto e diversas brincadeiras infantis provêm da antecipação do canto do gigante. As crianças gostam de imitar o gigante e muitas começaram já a cantar dos seus sonhos as músicas sem palavras.

Sabe-se que o gigante canta somente dos seus sonhos mas não se sabe com o que ele sonha. Nas academias foram feitas teorias discordantes entre si quanto à matéria do sonho do gigante que podemos apenas perceber pelo seu canto. Há teorias que afirmam que o gigante irá um dia acordar e com ele levar toda a cidade assim apagando-a da face da terra e arrastando seus destroços por onde passa. Outra teoria afirma que já aconteceu assim a uma outra cidade e o gigante por motivos que são somente dele decidiu vir dormir nesta outra cidade. Esses cidadãos vivem em constante medo. Muitos deles têm seus filhos e os proíbem de mencionar o gigante e de cantar como ele.

Todos sabem por que o gigante dorme mas ninguém sabe por que ele sonha e nem o porquê do seu canto. Passarinhos vêm constantemente fazer ninho nos seus ombros e na sua cabeça e nas suas mãos abertas. O gigante não tem nome.

[Der Riese, 1919, Sils im Engadin]

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Dois filmes

1. Aos cinco anos de idade Alfred Hitchcock foi, sem razão alguma aparente e por ordem de seu pai, preso durante cinco minutos que transcorreram como uma eternidade. Depois disso passou a maior parte da sua vida adulta recriando e revivendo esse momento, eternamente e nas mais diferentes circunstâncias. No processo, desenvolveu as ferramentas básicas para o suspense no cinema. Hoje em dia, é impossível realizar um filme e o chamar de suspense sem se ver voltando as técnicas e temáticas hitchcockianas. Certos diretores, como é o caso de Brian de Palma, deram prosseguimento às preocupações hitchcockianas, tomando-as para si, e as interpretando à sua maneira, em outras palavras, expondo seu ponto de vista. Esse, também, é o caso de O silêncio dos inocentes, de Jonathan Demme. Não é o caso dos filmes de David Fincher, em particular do seu último, Garota exemplar. O objetivo desse ensaio é comparar os dois filmes e tecer alguns comentários sobre os usos do suspense dos quais os filmes se utilizam.

2. O silêncio dos inocentes não exige muita introdução. Ganhou oscars, fez a fama de seu diretor e atores. Entretanto, é um filme bem superior à soma de suas partes (Jodie Foster tocante, Anthony Hopkins verdadeiramente ameaçador, roteiro bem amarrado, etc, etc). O filme acontece é no trabalho de câmera.

3. Tome-se a cena na qual Clarisse (Foster) conhece Hannibal Lecter (Hopkins). Inicialmente, parece tão-somente um trabalho de campo-contracampo. Clarisse hesita corredor adentro, e o contracampo nos mostra os prisioneiros. Vemos Lecter pela primeira vez, do ponto de vista de Clarisse, que é o mesmo da câmera. Lecter está imóvel dentro de sua cela envidraçada, olhando diretamente para a objetiva da câmera. Eis a operação principal do filme, aonde sua arte se mostra mais evidente e mais forte: não há campo e contracampo no filme, mas sempre uma operação aonde alguém no comando da cena observa alguém em posição de risco. Esse efeito é alcançado, sobretudo, na opção de fazer os atores que olham para Clarisse olharem para o centro da objetiva. O filme é rico em cenas dedicadas não somente ao ato de Clarisse observar as pessoas e o espaço ao seu redor (dado usual do suspense hitchcockiano, tornar a visão e a observação numa ação) mas também se sentir e ser observada. Esse é o principal fator (dentre outros que não convém entrar em detalhes para os propósitos desse ensaio) em gerar empatia pela personagem de Foster. Essa operação, por conseqüência, contribui para o específico do espaço aonde o filme se passa: cidadezinhas pequenas de interior, a casa do assassino, a cela de Lecter, etc. A cena em que Clarisse visita a casa do pai da primeira vítima, por exemplo, é de uma caracterização rica, presente, feita com real generosidade e empatia para com as pessoas que sofreram devido às ações do assassino Buffalo Bill. É em seqüências como essa que se sente, inequivocadamente, a justificação plena e coerente das escolhas estéticas do filme com as preocupações do autor, num medida acertada.

4. Agora, o oposto total de uma harmonia entre estética e tema (história, fábula, etc.) há de ser o último filmeco expelido pelo David Fincher, Garota exemplar. O filme é corolário de sua época: não se tira nada do filme pelo o que ele apresenta, mas sim por o que ele deixa de apresentar. No final do filme, tem-se a impressão que Fincher não se interessa sequer remotamente pelas pessoas e lugares e ações que filma (que dirá do mundo que habita, então...). Se no final de O silêncio dos inocentes se sai do filme sentindo que conhecemos um pouco mais sobre o mundo, e sobre os personagens da narrativa, no final de Garota exemplar sente-se que sabemos menos ainda do que está no filme do que quando ele começou. Em outras palavras, o filme passa por nós isento e por ele passamos isentos também, como se saíssemos de um metrô para descobrir que ainda estamos na mesma estação. Em termos dramáticos, os personagens não são pessoas, mas coisas ao qual outras coisas ocorrem. A câmera passa isenta sobre as pessoas e lugares e coisas filmadas. O tom da montagem é genérico, nos mostrando informações genéricas sobre o filme, indo de um plano a outro de maneira desmotivada, num sentido de "isso aconteceu e depois isso e então isso e depois mais isso". O filme se parece mais com uma apresentação de Power Point do que com qualquer outra coisa. Pessoas, acontecimentos, e possíveis temas e pontos de vista (como a mídia sensacionalista, e o moralismo geral de nossa época) se perdem no vácuo do nada que é o filme. Daí se vê que a lição de Hitchcock não é reduzível à movimentos de câmera e operações de montagem mas sim, sobretudo, há uma grande paixão que rege o ato de filmar e realizar um filme.

5. Cena chave para entender o que se passa, é uma seqüência de assassinato que ocorre pela metade do filme. Amy, a garota exemplar, mata a sangue frio um ex-namorado que a estava ajudando a se esconder. Os dois estão no meio do ato sexual quando Amy tira de debaixo do travesseiro a navalha oculta que usa para abrir a jugular do seu ex-namorado. A seqüência dura pouco tempo, a violência filmada é absurda porque é asséptica, e durante a ação, tomou-se a decisão de adicionar microfades (inicialmente, parece coisa de censor, não de artista) que escamoteiam a violência e, juntos com a música tecno-nula, criam um distanciamento que destrói qualquer ideia de suspense, de drama, de peso, em suma, de vida, que possa haver na cena. Não ajuda também que a atriz esteja de calcinha e sutiã (mostrar o rio de sangue que sai de uma jugular aberta, isso aceita-se, mas mostrar seios e vagina supostamente é mal gosto...). O filme é essa cena: absurdo, irresponsável, moralista.

6. Pode-se aprender muito sobre o cinema tanto com um filme excelente, quanto com um filme ruim. Garota exemplar é, portanto, (com o perdão do trocadilho) exemplar: uma premissa arruinada pela execução preguiçosa e incoerente. Nisso, também é exemplar de seu autor.

ENCONTROS NO FIM DO MUNDO

"He was alone. He was unheeded, happy and near to the wild heart of life."

James Joyce, A portrait of the artist as a young man, IV.


"I love nature but against my better judgment".

Werner Herzog.


1. É preciso se perguntar como e porque os documentários feitos por Werner Herzog se diferenciam da maioria. De início, ir filmar na Antártida não é fora do comum em documentários. O Discovery Channel está repleto deles. Herzog é coerente com o nome do canal: filma uma descoberta, várias. Usualmente, o documentário cai nas garras da cultura da informação (feita por, e para, o que Nelson Rodrigues chamou de "os imbecis da objetividade"). Herzog é um dos realizadores que nós lembra o porque o documentário surgiu. Seu filme está em pleno acordo com a tradição que se iniciou em Flaherty: filmar é ir a um encontro. Faz sentido, também, que o filme se chame Encontros no fim do mundo.

2. O prazer da descoberta, o ato de encontrar algo, é o centro do filme. Pode-se, com algum exagero, certamente, se perguntar se esse prazer, esse ato, não seria o fundamental do cinema. Naturalmente, isso é desconsiderar que descobrir, felizmente, não é exclusivo somente ao cinema. Depois de alguns minutos vendo o filme, deixa-se de se espantar com o encanto e alegria dos entrevistados: como poderiam deixar de estarem encantados?, como poderiam deixar de se alegrar? Estão no fim do mundo, estão no início do mundo. A majestade do espaço polar, em lugar de assombrar e imobilizar o homem, na verdade o propele à ação. As pessoas que habitam esse lugar não diferem muito, e certamente conhecem o sentimento, dos homens que primeiro navegaram os oceanos, sem saber quando iriam encontrar terra firme, ou se cairiam borda do mundo afora.

3. O papel que o documentarista desempenha é semelhante a de um visitante. Ele é convidado, ou se convida, à algum lugar, conhece pessoas, filma eventos, recolhe informações, ouve histórias; em suma, ele aprende algo. O bom documentarista está sempre num processo de aprendizado. Pode-se dizer que ele está numa posição de humildade diante do mistério da vida. Ele não embeleza, não estetiza a vida, não busca representações, ou símbolos. Seu lema é o de Bresson: "Nada de bela fotografia, nada de belas imagens, mas imagem e fotografias necessárias". Em suma, ele sabe aonde parar. Ele não é como Michael Moore, tendencioso e demagogo, mas, sim, um educador: a real educação, que consiste em criar interesse, despertar curiosidade, e um gosto pelo saber.

4. Pode um filme, que dirá um plano, conter a história do homem e do mundo? A cada encontro nessa terra inóspita, percebemos a presença do homem. Viajamos e exploramos, sim - mas levamos de casa todos os nossos problemas. Na Antártida a condição humana vem à tona sob o céu azul de seis meses. Vemos isso a cada entrevista e na narração de Herzog. Nossas contradições, nossa força e nossa fraqueza, são reveladas pela luz que toca o sexto continente. O comportamento do pinguim que persegue a montanha à uma distância impossível seria, portanto, tão estranha a nós?

The Globe (Park Row) nasceu no lugar aonde nascem todas as melhores idéias: em um bar. O bar está no nível da rua e a redação do Globe também: eis cinema de Fuller, o campo de batalha, pés firmes no chão; "o globo", a crosta terrestre, a terra, em oposição ao The Star. O escritório de Mitchell dá para a rua e há uma ampla janela da qual ele acompanha o movimento da rua. Em oposição há o escritório de Charity Hackett, uma caixa fechada, com um retrato da própria.


Filmado em catorze dias, com dinheiro do bolso do diretor: Phineas Mitchell e Samuel Fuller não seriam o mesmo homem? Nisso é um filme exemplar, um tratado em cinema (e jornalismo): se não se trabalha com paixão e sangue o melhor então é nem trabalhar. E Mitchell é um diretor de cinema, nada escapa da sua mise en scène, acaba com as barreiras entre os jornalistas: estamos num set de filmagem, além de uma redação de jornal: Mitchell encara sua realidade com engajamento e um preciso senso de indignação: trata-se de tomar uma posição na qual se acredita, não por ideologia, mas por ética.



O jornal de Mitchell é a câmera de Fuller: seu encontro com a realidade se dá através do enfrentamento.



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One, two, three, four . . .

Esse é um blog sobre cinema.