quarta-feira, 1 de julho de 2015

Dois filmes

1. Aos cinco anos de idade Alfred Hitchcock foi, sem razão alguma aparente e por ordem de seu pai, preso durante cinco minutos que transcorreram como uma eternidade. Depois disso passou a maior parte da sua vida adulta recriando e revivendo esse momento, eternamente e nas mais diferentes circunstâncias. No processo, desenvolveu as ferramentas básicas para o suspense no cinema. Hoje em dia, é impossível realizar um filme e o chamar de suspense sem se ver voltando as técnicas e temáticas hitchcockianas. Certos diretores, como é o caso de Brian de Palma, deram prosseguimento às preocupações hitchcockianas, tomando-as para si, e as interpretando à sua maneira, em outras palavras, expondo seu ponto de vista. Esse, também, é o caso de O silêncio dos inocentes, de Jonathan Demme. Não é o caso dos filmes de David Fincher, em particular do seu último, Garota exemplar. O objetivo desse ensaio é comparar os dois filmes e tecer alguns comentários sobre os usos do suspense dos quais os filmes se utilizam.

2. O silêncio dos inocentes não exige muita introdução. Ganhou oscars, fez a fama de seu diretor e atores. Entretanto, é um filme bem superior à soma de suas partes (Jodie Foster tocante, Anthony Hopkins verdadeiramente ameaçador, roteiro bem amarrado, etc, etc). O filme acontece é no trabalho de câmera.

3. Tome-se a cena na qual Clarisse (Foster) conhece Hannibal Lecter (Hopkins). Inicialmente, parece tão-somente um trabalho de campo-contracampo. Clarisse hesita corredor adentro, e o contracampo nos mostra os prisioneiros. Vemos Lecter pela primeira vez, do ponto de vista de Clarisse, que é o mesmo da câmera. Lecter está imóvel dentro de sua cela envidraçada, olhando diretamente para a objetiva da câmera. Eis a operação principal do filme, aonde sua arte se mostra mais evidente e mais forte: não há campo e contracampo no filme, mas sempre uma operação aonde alguém no comando da cena observa alguém em posição de risco. Esse efeito é alcançado, sobretudo, na opção de fazer os atores que olham para Clarisse olharem para o centro da objetiva. O filme é rico em cenas dedicadas não somente ao ato de Clarisse observar as pessoas e o espaço ao seu redor (dado usual do suspense hitchcockiano, tornar a visão e a observação numa ação) mas também se sentir e ser observada. Esse é o principal fator (dentre outros que não convém entrar em detalhes para os propósitos desse ensaio) em gerar empatia pela personagem de Foster. Essa operação, por conseqüência, contribui para o específico do espaço aonde o filme se passa: cidadezinhas pequenas de interior, a casa do assassino, a cela de Lecter, etc. A cena em que Clarisse visita a casa do pai da primeira vítima, por exemplo, é de uma caracterização rica, presente, feita com real generosidade e empatia para com as pessoas que sofreram devido às ações do assassino Buffalo Bill. É em seqüências como essa que se sente, inequivocadamente, a justificação plena e coerente das escolhas estéticas do filme com as preocupações do autor, num medida acertada.

4. Agora, o oposto total de uma harmonia entre estética e tema (história, fábula, etc.) há de ser o último filmeco expelido pelo David Fincher, Garota exemplar. O filme é corolário de sua época: não se tira nada do filme pelo o que ele apresenta, mas sim por o que ele deixa de apresentar. No final do filme, tem-se a impressão que Fincher não se interessa sequer remotamente pelas pessoas e lugares e ações que filma (que dirá do mundo que habita, então...). Se no final de O silêncio dos inocentes se sai do filme sentindo que conhecemos um pouco mais sobre o mundo, e sobre os personagens da narrativa, no final de Garota exemplar sente-se que sabemos menos ainda do que está no filme do que quando ele começou. Em outras palavras, o filme passa por nós isento e por ele passamos isentos também, como se saíssemos de um metrô para descobrir que ainda estamos na mesma estação. Em termos dramáticos, os personagens não são pessoas, mas coisas ao qual outras coisas ocorrem. A câmera passa isenta sobre as pessoas e lugares e coisas filmadas. O tom da montagem é genérico, nos mostrando informações genéricas sobre o filme, indo de um plano a outro de maneira desmotivada, num sentido de "isso aconteceu e depois isso e então isso e depois mais isso". O filme se parece mais com uma apresentação de Power Point do que com qualquer outra coisa. Pessoas, acontecimentos, e possíveis temas e pontos de vista (como a mídia sensacionalista, e o moralismo geral de nossa época) se perdem no vácuo do nada que é o filme. Daí se vê que a lição de Hitchcock não é reduzível à movimentos de câmera e operações de montagem mas sim, sobretudo, há uma grande paixão que rege o ato de filmar e realizar um filme.

5. Cena chave para entender o que se passa, é uma seqüência de assassinato que ocorre pela metade do filme. Amy, a garota exemplar, mata a sangue frio um ex-namorado que a estava ajudando a se esconder. Os dois estão no meio do ato sexual quando Amy tira de debaixo do travesseiro a navalha oculta que usa para abrir a jugular do seu ex-namorado. A seqüência dura pouco tempo, a violência filmada é absurda porque é asséptica, e durante a ação, tomou-se a decisão de adicionar microfades (inicialmente, parece coisa de censor, não de artista) que escamoteiam a violência e, juntos com a música tecno-nula, criam um distanciamento que destrói qualquer ideia de suspense, de drama, de peso, em suma, de vida, que possa haver na cena. Não ajuda também que a atriz esteja de calcinha e sutiã (mostrar o rio de sangue que sai de uma jugular aberta, isso aceita-se, mas mostrar seios e vagina supostamente é mal gosto...). O filme é essa cena: absurdo, irresponsável, moralista.

6. Pode-se aprender muito sobre o cinema tanto com um filme excelente, quanto com um filme ruim. Garota exemplar é, portanto, (com o perdão do trocadilho) exemplar: uma premissa arruinada pela execução preguiçosa e incoerente. Nisso, também é exemplar de seu autor.

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