O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência.
Machado de Assis, Aquarelas.
1.
Tarantino faz tão poucos filmes que numa carreira de mais de vinte anos estar diante de seu oitavo filme (fato orgulhosamente mencionado no início do filme, gerando a simetria entre os oito imbecis do título e os oitos filmes em sua carreira: há um filme para cada imbecil do título, só resta saber quem ficará com Jackie Brown, ainda o melhor trabalho de Tarantino, a considerável distância dos demais) é fato tão insólito que eu não soube inicialmente o que fazer disso. Filmografia magra assim se explica quando os filmes não rendem lucro, mas e no caso do Tarantino, popular desde seu primeiro filme? Numa entrevista ele explica isso falando que se considera diretor "de obra" e não de filme a filme, e que um filme ruim poderia ser prejudicial aos outros que pudessem ser bons. Ora, eu só sei que quando um filme é bom, ele é bom. Para além da petulância usual de Tarantino, vê-se que somente alguém muito inseguro de si e de sua habilidade defenderia tal estupidez. Isso explica os erros desse seu novo filme, talvez?
Se não explica, contribui para um melhor entendimento. Certos diretores, de fato, são artistas de "obra", mas isso porque alcançam uma certa dose de coerência que une seus filmes. Dois nomes me vem a mente, e dois que filmaram tão pouco quanto Tarantino e são tão distintos dele: Bresson e Cimino. Filmarem pouco não os põe em desvantagem em relação a, digamos, Hitchcock ou Ford ou Lang. Para além de interesses pecuniários, o que está em jogo é o posicionamento perante o trabalho. Uma pressão, uma urgência, um estado de espírito que perpassa todo o processo. Tanto Cimino quanto Bresson jamais filmaram um plano indigno, mas, sem a felicidade de poder filmar todo ano, não usufruiram da oportunidade de realizar, para além de obras primas, filmes menores, excercícios de grande interesse, ou, mesmo, as "obras primas doentes", uma obra, enfim, vasta, repleta não apenas de picos, mas de vales e declives, subidas íngremes, terrenos pedregosos; outras facetas a se explorar, ausentes quando se tem a curiosa desvantagem de se produzir apenas obras primas. Não raro, pode-se aprender mais com uma experiência malfalada, ou com um filme sabotado pelo estúdio, ou má escalação, ou o que seja, do que com um filme que tem a fraqueza de ser perfeito. Fritz Lang teve ampla liberdade de filmagem, e orçamentos generosos na Alemanha, mas seus filmes mais interessantes, me parece, saiu de seu trabalho espartano nos Estados Unidos.
Tarantino não se encontra em nenhum desses dois casos. Está em algum ponto entre eles. Seu ritmo de trabalho é lento, como o de Kubrick, por exemplo, mas não por algum escrúplo em particular na preparação de um filme, mas por insegurança. (Se há algum escrúpulo, algum preparo mais elaborado, eles não se mostram nos filmes, aí é caso de fracasso completo.) Por ser inseguro, não apenas se filma pouco, como se sente a necessidade de muletas, seja a estrutura em capítulos (que em Kill Bill até poderia ter alguma coerência, pois o filme se dava como uma série de televisão), seja o fetichismo do 70mm. Não é por acaso que seus melhores filmes sejam os mais despojados do glamour usual que ele costuma imprimir em seus recalques do cinema de gênero. Comparado ao que foi fazer depois, Jackie Brown é algo tão antípoda ao resto de sua filmografia que nos põe a pensar no que se passou entre esse filme e Kill Bill, e o que foi que perdemos com isso, qual foi o lado de Tarantino que perdeu-se de vista. Talvez tenha sido a novidade de ter trabalhado com material alheio, que o forçou a rotas diferentes das usuais, uma encenação mais ordenada e um olhar mais sereno, em lugar de seu maneirismo onanista e montagem truncada. Talvez fosse uma necessidade de compartilhar algo, tendo saído do sucesso estrondoso de Pulp fiction, que não fosse uma paixão, louvável em si mesma e bastante compreensível, pelo cinema e pelo fazer cinema, mas que fosse um amadurecimento, e um momento de ponderação sobre o que é superar uma etapa de uma vida, o que é envelhecer num mundo aonde não é mais viável envelhecer, o peso do que se deixa para trás, e quem se deixa para trás. Talvez fosse apenas uma etapa natural do processo de amadurecimento de um artista talentoso, um artista que ficara mais confiante em suas habilidades e forças, a ponto de entregar um trabalho de qualidades menos óbvias, um filme direto e sem circunlóquios, um filme mais aberto que os anteriores. Talvez, quando Jackie sai de carro da vida de Max e do filme que acabamos de ver, era o Tarantino que saía de Cães de aluguel e Pulp fiction, disposto a deixar esses filmes e o método que os criou para perseguir outras coisas. Teria sido um filme de transição, caso o Tarantino tivesse dado prosseguimento com o que parecia ser o rumo natural de sua carreira e abandonado seus macetes maneiristas. Em lugar disso, permance somente um grande filme, o único grande filme de sua carreira. Um desvio. Porque depois disso, Tarantino voltou-se, talvez a contragosto, ao que vinha fazendo antes, mas não sem regredir assustadoramente. O que era ruim tornou-se pior. O maneirismo é um esgotamento de formas, traço do decadentismo. São obras saturadas, de excesso. Tarantino consiste no esmorecimento desse escola, decadência da decadência. O primeiro plano de Kill Bill é o assassinato de Jackie Brown.
If you are making genre movies you cannot refuse to shoot the obligatory scenes: how do we get from A to B to C to D. But some directors feel that they are just boring parts because they are plot and who wants to hear about that -- let's get on with the stylistic business. It's great to be a stylist, and I really like that, but on the other hand you cannot refuse to pay attention to the conventions you are working with. Make a new form and be Fellini, but then don't try to be Don Siegel.
Brian de Palma.
2.
A história se passar numa cabana enterrada numa nevasca, e a presença de Kurt Russell, naturalmente me levou a pensar em O enigma de outro mundo. Não me surpreendi ao me deparar com uma declaração do Tarantino confirmando essa conexão. Indica a confusão mental que deu origem ao filme. Nada mais distante de Carpenter do que os procedimentos de Tarantino. Falta-lhe o compromisso para com o cinema de gênero. Carpenter não se importava em seguir a risca os preceitos desse cinema, talvez porque soubesse que é fácil superá-los e passar adiante para o que realmente importa. Diante dos mesmos problemas, Tarantino congela. A ele os clichês surgem como monstros assombrosos e o fazem esconder-se dentro da caverna sem saber que esse dragão é somente sombra e fuligem. Para Carpenter, esses clichês, esses preceitos, são tão-somente o contexto aonde se dá sua mise en scène, como a roupa que cobre o atleta que supera novas distâncias. Nisso, e talvez apenas nisso, se dá a semelhança de Carpenter com Hawks. Ora, para Tarantino, o que justamente interessa é a roupa, a aparência, e não a superação, e muito menos a distância. Para Carpenter, o mal é absoluto e invencível (com a possível excecão de They live). Para Hawks, nenhum problema é superior a um trabalho bem executado que lide com ele. Para Tarantino, nada disso importa: o que importa é que o trabalho seja extravagante e exuberante ao ponto aonde o problema inicial seja mero pretexto para que essa ação ocorra.
Nada menos hawksiano do que os personagens de Tarantino e as situações aonde se encontram. Todos os filmes de Tarantino são histórias de planos complicados demais para funcionar. Tomemos esse The hateful eight (que aqui no Brasil ganhou a traducão estúpida de Os oito odiados). Consiste em transportar uma prisioneira de ponto A para ponto B. Mas vem a nevasca do Colorado para atrapalhar os planos. Torna-se necessário ficar esse tempo na loja de secos e molhados da Minnie. Ah, mas não se pode confiar em ninguém. Temos aí o whodunnit em que consiste o filme. Quem, dos personagens que estão já na loja ou dos que vieram na diligência, está em conluio com a prisoneira, Daisy Domergue, para libertá-la de John Ruth, conhecido como "The hangman" porque nunca deixou um prisioneiro escapar da forca? Essa é a situação de Agatha Christie desse filme. O filme é a operação de John Ruth e do Major Marquis Warren para descobrir quem é o vilão que irá libertar Daisy. Operação duplamente inútil: todos que estavam na casa antes de sua chegada eram da gangue de Daisy, mais seu irmão que estava escondido no porão da casa, e todos irão morrer no tiroteio final, menos Marquis e o novo Xerife, que tratarão de devidamente enforcar a Daisy por ressentimento. Isso quem não fora envenenado antes e morreu vomitando as tripas para fora, da forma mais "tarantinesca" (um adjetivo odioso, porque revela não um código de conduta, uma ética, mas um inventário de cacoetes) o possível.
Inicialmente, fecham-se os núcleos. Temos o Kurt Russell e o Samuel L. Jackson, que representam o Norte, contra o Sul, do Xerife e do velho General rebelde (o filme se passa depois da Guerra Civil). Os outros personagens se mantém num estado de neutralidade nesse conflito Norte-Sul, que o papel de serem suspeitos lhe pede. Acorrentada no centro de tudo há Daisy. Temos a situação de Cães de aluguel, o personagem imóvel pelas circunstâncias e os outros procurando resolver os problemas que eles mesmo criaram. O que surge disso é a mesma coisa que há nos outros filmes: tudo é teatro, tudo é performance, desde o plano dos "vilões" (fingir que são trabalhadores na casa de secos e molhados, procurar convencer os demais disso, dispor dos elementos na cena, seja ocultar os traços de violência, seja manter o velho General vivo, "que dá um toque de autenticidade" à farsa toda) até a carta falsa de Abraham Lincoln, que o personagem de Samuel L. Jackson usa como um escudo. Não por acaso, o personagem do Kurt Russell é o primeiro a morrer: ele é o único que não esconde nada, o único que deixa claras suas intenções desde o início; é o único que se recusa a entrar no jogo. Daí sua genuína ofensa contra a mentira da carta do personagem do Jackson. Ora, se fosse Hawks, não haveria jogo de teatro algum: isso tudo seria distração do trabalho a ser excecutado, que deve ser claro e limpo desde o princípio. Em Hawks, quem tem algo a esconder, quem se recusa em jogar às claras, é sempre o primeiro a perder.
Mas é justamente esse teatro em que consiste o talento de Tarantino (não é por acaso que as melhores partes de Bastardos inglórios e Django livre sejam justamente as mais teatrais). Tarantino é um diretor de ação medíocre (a perseguição em À prova de morte é a exceção que confirma a regra). Já se falou em algum lugar, e concordo, que seu talento reside em criar esperas, criar momentos vazios (o mais belo desses momentos: Jackie, recém saída da cadeia, colocando The Delfonics para tocar, sob o olhar apaixonado de Max). É pena, então, que esse filme seja tão pobre em encenação. A ideia de dividir a loja em Norte-Sul é muito mal aproveitada. O filme, como tantos outros de nossa época, depende demais da continuidade intensificada. Talvez seja efeito da perda irreparável da ótima montadora Sally Menke. Talvez seja traço de envelhecimento precoce por parte do Tarantino. Nesse sentido, The hateful eight é um filme dividido. Parece haver o desejo de retornar à primeira etapa de sua carreira, à Cães de aluguel. Por outro lado, há ainda todos os cacoetes que Tarantino trouxe desde Kill Bill, os flashbacks que se prestam a explicar o que já sabemos (o flashback da história do Major Warren abusando o filho do General é o ponto mais baixo da carreira de Tarantino; é um procedimento meramente repugnante, mais ainda porque procura ser engraçado), a abundância de closes (que, diferente do que Leone fazia, não conseguem dar ritmo algum às cenas), a fotografia asséptica de Robert Richardson, os blood squibs exagerados, usados como contraponto cômico ao absurdo das situações, a inutilidade de quebrar o filme em capítulos.
Escondido debaixo disso tudo, parece haver ainda, lutando a duras penas uma batalha perdida, o jovem realizador de Jackie Brown. The hateful eight ainda é um filme melhor do que Django livre, o que não quer dizer muita coisa. Porque Tarantino não é, como Carpenter, um diretor de gênero. Não é, como Hawks, um diretor de ação. Não, o primeiro Tarantino, aquele de Cães de aluguel e Pulp fiction, vem de George Lucas e de Guerra nas estrelas: o retorno aos clichês heterogênios que se amontoam, um sobre o outro, de forma achatada, homogeneizada, pasteurizada. Uma série de símbolos desconexos. Jackie Brown foi o fim disso, uma tentativa malfadada (comercialmente), de mudar o jogo. Desapontado, Tarantino regrediu mais ainda. Esse segundo Tarantino, de Kill Bill em diante, é análogo à Family guy: um non sequitur de roupagens e clichês e símbolos de outrora, formulados como piadas de mal gosto (porque faltam-lhes critério). O western, como gênero, nada tem a ganhar com Tarantino, e Tarantino nada tem a ganhar com o Western. Mas Tarantino parece não ver isso, ou se vê, não se importa. Informa que quer somente fazer mais dois filmes e se aponsentar. Não é o cinema que perde com isso, mas sim Tarantino que sai perdendo.
Pós escrito: Bernardo Carvalho, no site do IMS, tem opinião de que falta um Tarantino no Brasil. Coisa estranha para se defender num país que largou Candeias e Sganzerla no ostracismo. O que temos mesmo é, infelizmente, tarantinos em abundância.
Pós escrito: Bernardo Carvalho, no site do IMS, tem opinião de que falta um Tarantino no Brasil. Coisa estranha para se defender num país que largou Candeias e Sganzerla no ostracismo. O que temos mesmo é, infelizmente, tarantinos em abundância.
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