domingo, 13 de novembro de 2016

Yi Yi

Em certa altura desse filme admirável – já mais perto do fim que do início – há uma misteriosa cena entre a avó da família e sua neta. A avó passou o filme inteiro moribunda, e sua neta viveu a culpa (imaginária ou não) de haver colocado a avó naquele estado (a avó teria tido o colapso depois de ter, ou não, levado o lixo para fora, tarefa da neta). Mas nessa cena essa avó está sentada ao lado cama, sem explicação, e dobra um origami. A neta se deita, cabeça no colo da avó, e pergunta “por que o mundo é tão diferente do que pensamos que fosse?”. A avó nada fala, apenas sorri enquanto acaricia os cabelos da neta.

Tudo muda. Quando a neta acorda, vê movimento no apartamento da família. Médicos e enfermeiras entram e saem. O pai conversa com um médico, na porta do quarto da avó. Entra o filho pequeno da família. Ele vê um dos enfermeiros levando um cilindro de oxigênio para fora do apartamento. A avó havia morrido. A neta olha para a porta entreaberta sem entender. Sente que tem algo na mão. Olha e vê que é o origami que a avó havia feito.

Essa é uma das muitas cenas que explica o duplo movimento do olhar dentro do filme: o que passa e o que permanece, o que está na frente das coisas e o que está atrás delas. Porque Yi Yi (que aqui recebeu o inexplicável e hilário título de “As coisas simples da vida”) ocorre entre esses dois pólos. Trata-se de uma sucessão de opacidades e reflexividades. É opaco porque é reflexivo e é reflexivo porque é opaco, numa relação de solidariedade. Como os personagens dentro de seus apartamentos, vistos de fora, por nós, e através do vidro de suas janelas, há no filme essa dupla camada: o que está na superfície e o que há por detrás disso. Nem sempre vemos esses dois lados com clareza, e nem sempre um lado incide diretamente sobre o outro. Se, por um lado, a clareza do registro nos permite entrever aspectos da vida interior dos personagens, essa mesma clareza também serve para ocultar outros aspectos. Do mesmo modo em que os personagens estão encerrados na arquitetura de Taipei, em apartamentos, escritórios, salas de aula, restaurantes, o plano também segue o desígnio de encarcerar os personagens. Eles se movimentam continuamente durante o filme, mas parecem não poderem sair do lugar. (No Japão, N.J. ainda assim não escapa de Taipei, tanto como não pode escapar à sua biografia).

Dito de outro modo, a complexidade desse filme repousa sobre uma economia de efeitos. Como se Yang dissesse “é só até aqui que vou, mostro as coisas até certo ponto, até o ponto onde as conheço.” É crucial a frase do menino Yang-Yang: “por que só podemos conhecer a verdade pela metade?”. Mas, longe dessa economia criar um distanciamento (como em Tati, por exemplo), aqui ela demonstra respeito. Respeito para com os personagens, seus dramas, as situações em que se encontram. Na montagem, isso aparece mediante o uso de elipses, espinha dorsal do filme. Como se, ao pular certos momentos dramáticos (entre eles um assassinato), Yang achatasse o filme, para que nenhuma cena tivesse especial ênfase, mas que o filme fosse, ele próprio, um todo coerente de grande ênfase. Para que se contrapusesse os detalhes do enredo (isso é, a vida interior dos personagens) ao mundo externo, para que fosse o tempo do mundo, e não da narrativa, que fosse o fio condutor do filme.


quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O caso "Aquarius", ou, O seio de Clara






























   As fotos no início do filme, cacoete de O som ao redor que inexplicavelmente se manteve, deu o tom do movimento que o Kléber Mendonça Filho fez daquele primeiro a esse: é sair do interior (Brasil, Pernambuco, Recife, que seja) ao litoral. Movimento inverso àquele da história brasileira, que a partir do litoral foi conhecer o interior. Aquele primeiro filme era fechado aos condomínios enjaulados, nesse a Dona Clara sacode a cabeleira vasta diante do janelão de seu prédio à beira mar. KMF parece querer se desvincilhar um pouco daquele primeiro filme ao escolher como foco uma única personagem, e não alguns núcleos fechados de uns poucos personagens. Se no Som ao redor esses núcleos de personagens gravitam em torno um do outro, sem jamais se tocarem, em Aquarius existe a presença de Clara para servir como o centro nervoso do filme. Se dá aí a primeira e mais crucial falha do filme: enquanto personagem, falta a ambiguidade* necessária para que Clara sirva com motor do filme (Sônia Braga, enquanto personalidade, se esforça até onde pode). Não que haja algo errado em se escrever personagens assim: Godard procedeu dessa forma na primeira fase de sua carreira, e Hitchcock antes dele. Mas nesses casos havia estrutura o suficiente naqueles filmes para suprir aquelas carências. Aqueles filmes partiam de fora para dentro. Havia uma estratégia geral ao qual os outros elementos dos filmes se conformavam. KMF tem talento para seguir esse caminho, mas sabotou seu filme na tentativa de fazer um "filme de personagem". Centralizar o filme nessa personagem sem ambiguidade (porque ela serve mais, parece, como porta voz de algumas opiniões) fere o conjunto geral do filme, e tira fôlego de sua principal força, que é a habilidade do realizador de criar um ambiente de suspense e perigo (habilidade melhor explorada em seu filme anterior, na medida em que ação se dava de forma mais predatória).

   A rigor, o filme é o primeiro ato de um roteiro de três: ele acaba no ponto em que o conflito se abre, e encontrou meios para se estabelecer e puxar a história do filme. Do modo em que nos é apresentado, Aquarius funciona como um conflito que se introduz e é logo abandonado, substituído por uma série de distrações (aniversários, noitada com as amigas, orgia, banhos no mar, caminhadas na praia) e vem a ser retomado apenas nos momentos finais da projeção, quando ele ainda está bem longe de sua conclusão. 

   Entretanto, pode-se argumentar que o filme terminar nessa aporia é coerente com a história de nosso país. Nossa história foi uma sequencia de falsos começos e de interrupções constantes. Então nosso cinema, como todos os outros elementos de nossa vida cultural, acompanha essa conjuntura. Grosso modo, "resolver" o cinema nacional seria resolver o país Brasil. Nossos melhores filmes entendem que existem dentro dessa contradição. Mas a diferença entre aqueles filmes e esse é que aqueles, enquanto filme, se resolviam. A revolução de Paulo Martins falhava junto ao projeto de país anterior ao Março de 64, mas o filme nos legava um final coerente com essa derrota e inércia. Carlos, ao tentar fugir de São Paulo, acabou por condenar-se, perpetualmente, a voltar àquela cidade e àquela vida. 

   Os dois finais que citei são heterogêneos, mas são finais. No filme de KMF, embora a colônia de cupins seja uma ideia perspicaz, (o que não é a mesma coisa que inteligente), ela perde sua força por não ter sido explorada dramaticamente. Da mesma forma que o câncer de Clara engoliu seu seio, os cupins corromperam o prédio que dá nome ao filme; mas, da mesma forma que não vemos o câncer de Clara (que nessa altura é mera memória, como o Aquarius é mera nostalgia), não vemos a ação dos cupins, como também mal vemos a ação dos agentes imobiliários, eles próprios cupins (essa ideia me parece ser defendida pelo filme, ponto ao qual retornarei mais adiante). Significa dizer que, em lugar de metáforas, que funcionam a partir de imagens, o filme opera através de símiles, algo semelhante à sinalização das placas de trânsito (Cuidado: Personagem coxinha à direita). Não que não possa haver uma equivalência entre o câncer e os cupins, mas no filme eles existem apenas enquanto essa conexão "câncer = cupins", ou "cupins = corretores", é apresentada. Quando descobrimos, juntos de Clara, da existência deles, já é tarde demais, tanto para o prédio quanto para o filme. Em lugar de qualquer solução formal, cênica ou dramatúrgica, a estratégia de KMF é buscar significado em equiparações de elementos que não se equivalem, ou, cuja equivalência é forçada pelo realizador. 

   Isso está bem demonstrado, creio, na longa cena de diálogo entre o jovem corretor de imóveis e Clara (com sua empregada, fiel escudeira, Sancho Pança para o seu Dom Quixote). Em termos de classe há pouca, ou nenhuma, diferença entre Clara e o corretor. São duas espécies em decadência, membros da mesma elite faminta. Diferença crucial aqui é o álibi cultural de Clara: versada na cultura pós-1964, liberal nos costumes, "amiga" de seus subalternos (ou, maldosamente, uma rainha no castelo-Aquarius, com seus súditos fiéis, seja a empregada ou o salva-vidas); em suma, Clara é "de esquerda". Mas aos olhos do discurso do realizador, ela não é igual ao corretor, que em algum ponto do filme é revelado ser um evangélico (não que isso demonstre, por si só, algo, mas o filme mostra essa fato como ponto de diferenciação irreconciliável entre Clara e o corretor). Porque, então, no corpo da montagem, via campo-contracampo, o filme os coloca como iguais? Ou, pela boca do personagem do corretor, que inclui Clara em sua classe, mesmo que ela não queira reconhecer esse fato? 

   Daí resulta a verdadeira ambiguidade do filme, aquela que surge mediante uma incoerência no discurso. Clara não pertence mais ao mundo das elites, como também jamais pertenceu ao mundo em que vive sua empregada (demonstrada na cena em que a empregada lhe mostra a foto do filho que morreu, para desconforto geral), por mais que ela se esforce em querer participar da vida dela. Daí, também, a incompreensão de seus filhos diante da recusa da mãe em vender o apartamento (e essa recusa é único motor dramático do filme): Clara se recusa a sair da nostalgia desse Brasil que se perdeu, se é que chegou um dia a existir, do mesmo modo em que se recusa a sair do Aquarius, como a criatura no zoológico que aprendeu a amar as barras de sua jaula. Carrega consigo essa nostalgia, como carrega a cicatriz do seio que perdeu.


   *Ambiguidade aqui como algo distinto de "profundidade". Clara parece se conformar a um "tipo" (mulher-liberal-brasileira-das-grandes-capitais-aculturadas) antes de ser um meio para a ação. Falta ambiguidade a ela, talvez, porque saibamos demais dela. Um personagem monomaníaco, como o Ethan Edwards, por exemplo, me parece mais vivo, por haver zonas de mistério acerca dele, que nubla nosso entendimento de suas motivações (por que não matou a sobrinha? por que decidiu não ficar na casa? quais foram suas ações durante a guerra civil, e por que demorou tanto a voltar para casa, mesmo com a guerra já terminada?). Clara, por outro lado, permanece sempre um "tipo", até por que a ação do filme não a leva a contradizer esse fato. E ela não se aprofunda como personagem porque, suspeito eu, a ação do filme é essencialmente passiva, até os instantes finais. 




segunda-feira, 4 de julho de 2016

Fim da história, morreu a vitória.

Esse site tem se parecido cada vez mais com uma coluna de obituários. 















76 anos. 

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Status of the New Filmmaker

Although the cinematograph has today reached a highpoint of perfection, its position is nevertheless critical, because if it has reached this level by the love alone of a few artists, it is still ready to fall into oblivion.

Of all the persons who work or who get mixed up with the cinematograph, only a small fraction comprise the intelligent artists who, with certain innate abilities, have a passion for work and art, make every effort to discover new principles and to deepen those that already exist.

Such an artist does nothing whose effects he isn’t aware of or that he hasn’t analyzed. Nothing escapes his observations and he is ready to take any path, if it combines his aptitudes with what has been discovered before him.

The art of the cinematograph is nothing other than the application of space in time.

No one will be received as a master of cinematographic art who is not of honest and moral character.(1)

Jean-Marie Straub

May 1, 1959

1959 Original language: French First published in Jacques Bontemps, “Nouveau cinéma à Pesaro,” Cahiers du cinéma, no. 180 (July 1966): 51.(2)

NOTES

1 Straub’s directive here echoes Plato’s inscription at the entrance of the Academy: “Let no one ignorant of geometry enter here.” —Ed.
2 Straub’s quotation is preceded by the following note by Jacques Bontemps: “These small or very small budget films are austere and severe in their appearance, and wish to be so. Ethics and aesthetics, as is known, are one. This is why no doubt Jean-Marie Straub doesn’t hesitate to give, following L’Encyclopédie ou Dictionnaire des Sciences (1765) and the Livre des Statuts des Horlogers de Paris (Manual for Paris clockmakers), a status to the ‘new filmmaker,’ or perhaps to the filmmaker tout court.” —Ed.

Tradução de Sally Shafto. Daqui.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Até quando nosso cinema vai ser o velho Glauber?

Pergunta o amigo Lenon Oliveira:

O velho Glauber é o Glauber novo, jovem. Aquele que berrava a importância que o cineasta-messiânico tinha para salvar o povo brasileiro de sua aculturação. Messianismo que caracteriza o cineasta brasileiro, que canaliza sua potência artística para a resolução e contestação dos problemas nos âmbitos social e político. Esta característica é exaltada de maneira exacerbada, tornando então o cineasta um ser exclusivamente, e necessariamente, engajado político-socialmente. Esta chaga deixa clara a unilateralidade do artista prevista por esta visão politizada de sua função (mas ha de ter função?).


Esta verve social do cineasta advêm de uma leitura cansada e maçante que foi feita dos propósitos cinemanovistas, em especial a de Glauber Rocha. O Cinema Novo, ou esta leitura predominante do movimento, flerta com uma teleologia marcadamente social e política, deixando o cineasta na posição de messias que PRECISA escancarar os problemas dessas ordens para então abrir os olhos do espectador. 

Não é esta leitura que impregnou o desenvolvimento cinematográfico brasileiro? O cinema que está a serviço dos problemas sociais e políticos, precisando, necessariamente, levantar bandeiras ou deixar clara suas posições de engajamento, que carrega o dom do sacerdócio cinematográfico; é o cinema eclesiástico, unilateralmente importante por ter que ser engajado, militar ou flertar com uma causa. Não é este o retrato do cinema brasileiro contemporâneo? Que bebe da fonte cinemanovista – e se embriaga dela?

Apesar de citarmos e lembrarmos dos cineastas “marginais”, parece que não apreendemos (ou simplesmente não os lemos, nem os vimos suficientemente) o seu legado insistentemente antiteleológico que atacava por excelência o Cinema Novo e suas proposições messiânicas. Esta vertente de pensamento possibilita a polivalência, que a meu ver, é essencial a cineastas ou artistas em geral. A leitura crítica predominante politiza até aqueles que fundamentalmente não se preocuparam com politizações e ideologizações baratas.




A crítica cinematográfica que é responsável pela formação, transformação e caracterização do cinema brasileiro – mesmo que à revelia dos próprios cineastas, e isso não faz diferença – carreou e lapidou bem nosso estilo cinematográfico conforme as linhas propositivas do Cinema Novo, tendo em Paulo Emilio Sales Gomes seu principal expoente e canal. Assim, a posição abençoada do cineasta torna-se mais necessária e difundida na medida em que o cinema precisa, conforme a crítica engajado-politizada, se posicionar diante de uma conjuntura sócio-política. O artista do cinema está imbuído desta responsabilidade e deve respeitar este sacrossanto destino; afinal ele participa da engrenagem artística eclesiástica, tendo a político-divina função de sacramentar os espectadores.

É muito comum que os filmes brasileiros, seguindo esta lógica, sejam fortemente “politizados”, ainda que seja uma politização rasteira e inculta. Nosso cinema se formou, contemporaneamente, com este viés, originado através desta leitura crítica retrógrada e cansada do Cinema Novo, além de toda a influência marcada e importante do documentário social e revelador (do clássico Humberto Mauro e seus filmes educativos do INCE a Eduardo Coutinho e seu moderno Cabra Marcado Para Morrer). Nosso cinema se tornou social e político quase que por excelência, e obrigação. É eclesiástico.

Estas características ficam mais evidentes em momentos de crise política, como esta que atravessamos agora. Neste momento o grande político-messias-cinematográfico se empodera e aparece para expiar todos os pecados do mundo. Ele aparece e é aplaudido e ostentado quando se diz politizado e a favor desta ou daquela orientação política (e pior, rechaça quem não se posiciona). O cineasta se revela militante, ideologizado, hiperpolitizado, que sabe tudo dos rumos que o país e o povo deve tomar. Cineastas assim caem no jogo fácil que polariza o pais entre o sim e o não no Senado, entre ir ao MASP ou à FIESP; revela-se o que se espera do cineasta-messias-politizado, sua posição moral diante de uma situação extremamente complexa. Um “Fora Temer!” bem falado e entonado torna as pessoas, magicamente, politizadas e intelectualizadas.

A meu ver o cineasta que se posiciona facilmente com relação a nossa conjuntura política presta um desserviço ao fazer artístico. O cineasta deveria ser o primeiro a duvidar de qualquer posição política, qualquer posição moral com relação a assuntos políticos. É muito estranho que um artista faça juízo de valor sobre tais acontecimentos; somos bárbaros, fomos expulsos da República por Platão; não nos pertence judiciar sobre questões morais e políticas; somos cães e bridados com uma feliz e oportuna semelhança etimológica: o radical kino que aproxima o cineasta do cínico, nós dos cães.




Diante disto proponho nos desvencilhar desta noção hiperpolitizada, e acrítica, do cinema e redescrever, desconstruir (no sentido de construir novamente, com outro olhar) os ideais cinemanovistas, em especial os de Glauber Rocha, já que é em volta dele que se gravitaciona as teses político-sociais posteriores e fundadoras do nosso cinema contemporâneo. Ler Glauber de novo, assistir seus filmes de novo, criar novas diretrizes a partir de sua extensa e importante obra. Notar que o próprio desenvolvimento cinematográfico dele já indica um afastamento dos conceitos fundamentalmente político-sociais que caracterizou fortemente seus primeiros filmes e escritos. Entender melhor a relação complexa e dialética que existiu entre sua obra e a dos “marginais”, a relação retro-alimentar que existiu entre eles. Aprofundar e entender este desenvolvimento cinematográfico que faz Idade da Terra ser absolutamente diferente de Deus e o Diabo na Terra do Sol – diferença especialmente no que diz respeito ao militantismo político-social, e a importância do papel do cineasta para o país. Rever Rogério Sganzerla e encontrar nele os motivos que o motivou a fazer “filmes de cinema”, e fugir de uma fácil função teleológica prenunciada pelos cinemanovistas inicialmente. Desenterrar de vez Jairo Ferreira, Candeias, José Mojica...

Acho importante que este movimento de redescrição e desconstrução tenha ao norte, não as bandeiras políticas, as causas e o militantismo barato, mas a própria função do cineasta, o próprio motivo de sua existência no mundo. O cineasta deve mesmo ter função especifica? Acredito que nós devemos ser os primeiros a contestar nossa suposta função, nosso trabalho; o cineasta deve ser o sabotador-de-si-mesmo, antes de mais nada. Pois é preciso pensar ainda mais naquilo que Tonacci defende: o cineasta é o bicho que coloca imagens no mundo, e então cria mundos; há já de início, um problema ético fundamental a ser enfrentado. Como podemos colocar, simplesmente, imagens no mundo, criar narrativas, sem ser críticos de nos mesmos?

Será que é salutar para nosso trabalho defender este ou aquele governo? Este ou aquele modelo político? Será que é importante mesmo, nós como cineastas, fazermos protestos em Cannes, Berlin ou seja lá onde for? Se, como cidadãos, já fica complicado defender uma bandeira facilmente, militando causas às pressas, sem pensar, sem entender a complexidade das situações, para um cineasta isto me soa como um absurdo e um desserviço. Só vejo desserviço e adolescentismo tardio hiperpolitizar tudo, ainda mais o trabalho artístico. Nem tudo é política é um conceito básico e essencial para a modernidade. E o cinema já nasceu no meio disso. Agora até filme pornô precisa ser politizado, vide o que disse o produtor de Brasileirinhas do seu mais novo filme, Operação Leva Jato. É triste!

Proponho então o cinema franciscano e redescritivo, radicalmente desfiliado e discursivamente oxigenado. Que tal? Que tal discutirmos os rumos do nosso cinema relendo e redescrevedo nossos clássicos?


Lenon Oliveira Gonçalves

quinta-feira, 19 de maio de 2016

1923-2016

DA IMAGEM À IDÉIA
por Alexandre Astruc

Ao invés de me entregar a esse exercício um tanto conveniente, e que muitos outros antes de mim e melhor do que eu, com maior ou menor felicidade, abordaram, que é o de lembrar as relações que a literatura e o cinema mantêm um com o outro e detalhar as adaptações possíveis deste para e por aquele, prefiro começar por duas citações de autores que tanto um como o outro tiveram o que lastimar ou louvar ao ver post mortem suas obras levadas às telas.

A primeira é de Balzac - mas eu me referi tantas vezes a ela, a ponto de torná-la minha, que tenho alguns escrúpulos de utilizá-la diante de vocês - e ela se encontra no admirável ensaio, única homenagem de um escritor a outro, sobre A Cartuxa de Parma de Stendhal. Existem, diz Balzac, três estilos: o primeiro é o estilo da imagem que é o estilo do sr. de Chateaubriand, o segundo o estilo da idéia que tornou ilustre o sr. Stendhal. E ele acrescenta: mas há um terceiro estilo, aquele em que a imagem remete à idéia, o meu.

A segunda é de Marcel Proust, e está no final de O Tempo Redescoberto, de modo que ela pode aparecer como uma conclusão, o clímax final da obra gigantesca que levou a cabo e a qual terminou apenas para ingressar na morte e na imortalidade. “A beleza das imagens está localizada na parte de trás das coisas; a das idéias, na parte da frente. De modo que a primeira cessa de nos maravilhar quando as apagamos, da mesma forma que só compreendemos as segundas quando as ultrapassamos.”

De minha parte, acho essa frase tão bela, tão profunda, ela vai tão longe no conhecimento do coração humano e no da existência de uma arte, que chego a sentir uma espécie de vergonha em usá-la aqui apenas como epígrafe a algumas reflexões sobre o cinema.

Mas, primeiramente, o que é a idéia no cinema?

É a mise en scène, ou seja, o olhar que o realizador, por intermédio da câmera - olhar ativo, olhar incisivo, como um julgamento, que se quer ou se almeja o do julgamento final -, pode portar e porta necessariamente não somente sobre a narrativa que se pôs a contar - em imagens, portanto - mas também sobre os cenários, os figurinos, os acessórios que tem à sua disposição, sem esquecer, sobretudo, antes de todas as coisas, dos seus intérpretes, os atores e as atrizes cujos movimentos do rosto e os gestos do corpo sua câmera, como um bisturi que perscruta incansavelmente, pode não somente atingir ou acreditar que atingiu a verdade suprema deles a qual ela persegue, mas que agora pode, por ter se transformado num olhar moral, como a beleza das coisas de que Proust fala, ultrapassá-la.

Uma idéia, portanto, um olhar. Um filme não é apenas uma história que nos contam com mais ou menos talento, mais ou menos recursos: é uma idéia em andamento, em movimento, e ouso dizer, parafraseando Hegel, olhando sob as janelas de sua universidade de Jena a passagem das tropas de Napoleão: “uma idéia a cavalo”... A primeira de todas essas idéias é aquela que vos vêm ao espírito, a partir do momento em que se abre um livro que você se propôs ou que lhe propuseram levar às telas, e é a seguinte: o que o autor quis dizer ao escrever este texto?

Por que ele escreveu? E, se por modéstia o autor se recusou a responder com antecedência: qual o seu significado oculto? Não se escreve, não se filma inocentemente.

Aqueles que dizem o contrário são mentirosos, e mentem principalmente quando dizem “eu apenas quis dizer a verdade, mostrá-la”, pois a arte é primeiramente uma mentira e sua verdade não é o contrário de uma mentira, mas a própria impossibilidade da mentira e a sua superação. É como a solidão na arte: ela não existe. Não se escreve, não se filma para si, para apenas falar de si; um filme é escrito para os outros. A arte parte desse princípio e o olhar do criador é o olhar do outro, daquele a quem a obra é destinada. Não existe filme, assim como não existe texto, de fato íntimo. Como diz Blanchot, a palavra “só”, por ser uma palavra, e que faz parte do logos, por ser aquilo que nos liga a nós mesmos, a Deus, aos outros, é tão universal como a palavra pão.

Vou tentar comprovar o que acabei de dizer tomando o exemplo de um filme que fiz, e que é além disso o primeiro que quis fazer. Trata-se de O Poço e o Pêndulo de Edgar Poe. Em 45 escrevi uma primeira versão, em que totalmente estarrecido pela beleza aterradora e que visa o sublime do estilo de Poe, eu falhei - abençoado seja Deus por ter feito com que eu perdesse esse primeiro script - por ter passado ao largo do essencial. Quando vinte anos depois, sob uma encomenda da televisão - Albert Olivier era então diretor da televisão pública -, retomei meu trabalho do zero, eu finalmente me coloquei as perguntas certas, cuja primeira seria por que Baudelaire concebeu tal paixão por esse autor desconhecido a ponto de aprender a língua inglesa para traduzi-lo e torná-lo seu. A primeira explicação que vem à mente é naturalmente quando Baudelaire fala dessa “jaula dourada” que foi o universo yankee para Poe, irmão como ele em maldição, em paraíso artificial, em profetismo. Isso seria suficiente? Estaríamos esquecendo O Corvo e, sobretudo, A Filosofia da Composição, onde vemos que Poe, espírito atormentado pela lógica, naturalmente levado à abstração, explica ou pretende explicar como ele concebeu metodicamente esse poema. Eis o que toca o Baudelaire de Meu Coração Desnudado, em que a exibição das misérias esconde, como em toda confissão verdadeira, um espírito de uma dialética superior, de uma inteligência transcendente, de uma lógica capaz de tudo dizer sob a condição de não confundir, como é de hábito na França, lógica e bom senso, rigor e falsa evidência. A verdade, como o Deus dos jansenistas, é uma verdade escondida que só pode ser abordada por espíritos corajosos, lentamente desvelada como o véu do templo segundo os Evangelhos: véu disposto pelos justos e o coletivo de mortais, rasgado na sexta-feira santa às três horas da tarde, enquanto o céu ficou escuro como tinta, pela ponta da espada do centurião... Poe e Baudelaire, como todos os grandes místicos, são espíritos levados à abstração e cabeças profundamente religiosas. Mas voltemos à lógica, a esse poder de raciocínio que liga Baudelaire a Poe e Poe a Baudelaire.

Sabemos (fiquei sabendo por um pequeno ensaio de Denis Marion) que Poe, enquanto Dickens publicava na Inglaterra Barnaby Rudge em série, havia deduzido, sem naturalmente conhecê-los, os primeiros capítulos já publicados, o desenrolar dos outros e o fim do romance.

Mas voltemos ao Poço e o Pêndulo. De que se trata: da narrativa de um pesadelo? Prossigamos. É da primeira à última linha um raciocínio ou uma seqüência de raciocínios de uma lógica perturbada, que em um estilo de uma suntuosidade soberana remete aos mais admiráveis poemas baudelairianos: “E, mortalha, sem fim, que do Oriente nos vem, Repara, meu Amor, na Noite aparecendo.” Ligados uns aos outros, passando de uns aos outros, Poço, Pêndulo, um prato cheio de uma refeição gordurosa, ratos, correntes, isto quer dizer os objetos e seres mais concretos, mais reais, as súplicas, dispostas aqui numa ordem rigorosa para servir de limite a um pensamento que nunca cessa de funcionar.

Um exemplo: em certo momento diz o prisioneiro, admirável Maurice Ronet: “reluziu em meu espírito algo que eu não saberia melhor definir senão como a metade informe daquela idéia de libertação, a que já aludi.” À luz desta tripla chama: prosa sublime em que não se sabe qual o aporte de Baudelaire e qual o de Poe, condução forçada do pensamento, e o objeto concreto através dos quais ele passa, eu tinha o essencial de O Poço e o Pêndulo na palma da mão: isto é, a idéia que o presidia e as imagens pelas quais ele passava. O resto era apenas trabalho, mas desse trabalho a execução também seria essencial, pois, como disse Napoleão, com a idéia em andamento, tudo está na execução.

Sabe-se, por exemplo - abro aqui um parêntese -, que na batalha de Wagram, vencida no primeiro dia pelos austríacos, Napoleão se refugia na ilha de Lobau de onde, por uma saída, ele faz com que sejam construídas três, três pontes: “por que três, Senhor?”, pergunta-lhe um braço direito... “Uma para as tropas que vão e outra para as tropas que voltam, ora!” “Mas e a terceira?” “Para os mensageiros.

É assim com o cinema como com a arte militar. Eu tinha tudo planejado, exceto que a maioria das ações ocorriam na escuridão total. “Como filmar as trevas?”, perguntava meu operador Nicolas Hayer. Juntos encontramos a resposta colocando a luz dos projetores em resistência: as trevas absolutas nas quais Ronet encontrava-se absorto apenas se iluminariam quando ele se aproximasse da parede seja para tateá-la, seja para medir a extensão de sua cela.

Mas já falei suficientemente de mim. Permitam-me convocar para o resgate Jean Renoir. Ele dormia tranqüilamente em casa, avenida Frochot, antes da guerra, quando no meio da noite um telefonema desesperado o acorda. Era Roland Tual, um amigo, então produtor: Jean, só você pode me salvar. Eu tenho em minhas mãos um contrato com a rede de ferrovias do Estado (a da estação de trem Saint Lazare) para a realização de Le train sans yeux que Duvivier deveria escrever e dirigir. Ele acaba de desistir. Você tem alguma idéia?

Ligue-me daqui a dez minutos. Renoir vai à sua biblioteca, tira A Besta Humana de Zola, folheia-o, e chega à famosa cena onde sobre um aterro ferroviário Lantier (Gabin) estrangulará Blanchette Brunoy... O rugido do trem cercado pela fumaça detém-no no seu gesto. Em um piscar de olhos Renoir viu a cena, a imagem e a idéia que circula: o sangue maldito dos Rougon-Macquart. Foi a partir desta única imagem, disse-me, que decidi realizar A Besta Humana, salvando assim os negócios do amigo Tual!

Aconteceu-me a mesma coisa, em certo sentido, mas com Flaubert, quando, porque precisavam de um diretor, e que La proie pour l’ombre, ainda não lançado comercialmente, havia agradado meu futuro produtor, propuseram-me uma adaptação moderna de L’éducation sentimentale. Eu não havia, faço aqui uma confissão, relido Flaubert, pois considerava o trabalho de Nimier como um roteiro original. Eu caí imediatamente em uma cena que me chamou a atenção: a que Madame Dambreuse, por quem Frédéric Moreau está loucamente apaixonado e que ele acredita que o ama também, afasta-se violentamente dos braços deste último com um “não”, que lhe coloca as tripas para fora no momento em que crê que ela consentiria em partir.

Por quê?

Porque se ela quer ter com Frédéric Moreau um pedaço de céu azul, fisicamente, animalmente, é o infeliz do seu marido que ela carrega consigo. Todo o filme foi reescrito por Nimier e filmado por mim para desenvolver essa idéia. Acrescento que, quando revi esta Educação Sentimental, o que me impressionou foi a lucidez extraordinária dos diálogos de Nimier, como se ele acrescentasse ao meu olhar um outro olhar que o multiplicasse...

Em La proie pour l’ombre esse outro olhar, esse olhar que assume o posto de mise en scène suprema, é a música de Bach: a famosa cantata 51 cantada pela sublime Teresa Stich-Randall, a qual me foi trazida, me foi dada como um presente dos céus... Eu havia imaginado uma cena clássica a três, mas movido por um pressentimento, eu a havia situado em um auditório. Assim que Christian Marquand põe essa cantata para tocar, da qual acabou de gravar o início, tudo se inclina a um universo superior; tudo, não estou de brincadeira, é animado por um sopro à la Murnau, à la Mizoguchi, porque os atores, esquecendo da cena que estavam a interpretar, começaram a andar no ritmo desta música sublime, e quando Annie Girardot, de costas e com o rosto na direção da parede, vira-se na direção de Marquand, de quem no momento ela aceita o amor, se ela tem lágrimas nos olhos e o espectador também, pelo menos é o que espero, é por causa desta música, que ela associa instintivamente (pois tudo na mise en scène baseia-se na fotografia e na análise lógica do que no homem é instinto) ao amor que, durante algum tempo pelo menos, ela se dá, e posso dizer sem exagerar que a mise en scène, a idéia, portanto, que domina La proie pour l’ombre, é menos a mim que a Bach que a devo...

Também é necessário entender que no cinema o que preside é um certo olhar, mas há também os pontos de vista... num certo cinema, pelo menos, como observou com justeza Jean Collet?

Existem cineastas como Visconti, Ophüls, Hawks, Lang e é claro Mizoguchi e Murnau, esses que pela câmera e pela mise en scène dizem o que têm em mente, e outros como Rossellini, e mesmo Fellini, que têm seus pequenos mundos secretos em si, antes mesmo e mesmo sem talvez terem confiado à câmera cinematográfica de levá-los à tela. Rossellini, por exemplo, realizando seu admirável A Tomada do Poder por Luis XIV, é tão pouco interessado pela mise en scène que confia freqüentemente aos cuidados de seu filho a direção de tal ou tal cena, contentando-se após a rodagem de perguntar, como uma repreensão: Por que você colocou a câmera no teto? Você não pode dar ao espectador a liberdade de decidir por si mesmo o sentido que ele pretende dar à cena que vê... Aquela família, a primeira, à qual por temperamento eu pertenço, não é menos, tanto quanto a outra, a de um cinema de autor, que se expressa diferentemente.

Alguém poderia da mesma forma, mas eu extrapolo, opor uma literatura de movimento, de imaginação, e até mesmo da desmesura, da qual Balzac seria o protótipo, sem que nunca, no fragor da trama, o autor abandone seu direito de julgar os personagens, e que eu chamaria, pois seus partidários são perseguidos pela próxima página, “a literatura dos profissionais”, a uma literatura ao mesmo tempo mais desenvolta, mais preocupada consigo que com os seus personagens, que seria a de Stendhal ou de Benjamin Constant. Condenados às plumas ou maquinista de travelling: é isso, é tudo uma coisa só. Assim, podemos compreender melhor a admirável reflexão de Proust que citei no início desta palestra. O autor que é ao mesmo tempo o mais intelectual, daí as suas constantes digressões, e o mais sensual de toda a literatura francesa, a ponto de criar ele mesmo por um jogo de espelhos de uma extravagante complexidade sua própria dor de não ser amado, tão abundante em imagens sublimes de modo que quando o narrador atravessa Saint-Loup rumo a essa Rachel por quem se apaixonou, e que sabe de onde ela está vindo, detendo-se por vinte páginas que duram sobre uma admirável descrição de uma pereira florescente, tem sempre em mente, diante dele, à sua frente, a beleza da idéia, a idéia do tempo, de que sabe que não poderá compreendê-la a não ser que a tenha ultrapassado, isto quer dizer assim que tenha terminado o seu livro...

Afastei-me da minha proposta apenas para retomá-la aqui. Toda mise en scène, toda idéia, portanto, é inevitavelmente acompanhada por um mínimo de moral.

Os travellings, disse Jacques Rivette, são uma questão de moral. Tendo de realizar, porque acontece que eu tenho atrás de mim alguns anos de matemáticas, um filme sobre Evariste Galois em que eu havia tentado (atingido no coração por essas palavras escritas às pressas em seu manuscrito, em que cem anos à frente do seu tempo, ao invés de dormir ou praticar o tiro ao alvo, ele tenta, na última noite que lhe resta para corrigir: “o leitor demonstrará por si mesmo, eu não tenho tempo!”) narrar sua última noite, pareceu-me de uma polidez elementar assimilar, ou tentar com as minhas débeis forças, essa teoria dos grupos que ele havia vislumbrado: o espectador que julgue se consegui! Fiquei chocado, à luz da documentação que havia reunido, que a única coisa que os historiadores retinham é que ele havia sido preso por ter proferido algumas injúrias a respeito de Louis-Philippe, culpado aos seus olhos por ter perdido a revolução de 1830, e eis o que faria com que ele passasse à posteridade, não fosse o salto quântico que aos 20 anos ele faria à análise...

Sempre me forcei a mostrar diante dos textos literários que eu me propus ou que me propuseram em levar às telas a humildade mais extrema. Assim foi com Une vie de Maupassant, roteiro que um conjunto de circunstâncias ou o acaso, para não dizer o Espírito Santo, haviam colocado em minhas mãos, sob a condição que eu não discutisse por um instante - e de resto eu não tinha o menor desejo - que a vedete fosse Maria Schell, que havia acabado de obter um grande prêmio de interpretação feminina por Gervaise em Veneza, aonde o contrato havia sido assinado. Perguntam-me “você conhece o livro?”. Mentindo, e sentindo instintivamente o que se oferecia a mim, respondo que sim. Chegando no aeroporto, pois voltávamos de Munique eu e a produtora, onde havíamos nos encontrado com Maria Schell por conta de seu famoso contrato, eu para lhe propor La plaie et le couteau, que havia escrito com Françoise Sagan e que a seguir se tornou La proie pour l’ombre; chegando, portanto, no aeroporto, precipitei-me sobre o livro e li Une vie todo, sublinhando com uma caneta azul o que me agradava, barrando o resto com vermelho. E me pus as questões: o que Maupassant, ao mostrar os infortúnios de uma mulher, quis dizer da necessidade primordial do divórcio me interessava apenas moderadamente.

Eu levo o livro para uma leitura mais aprofundada e por detrás desse argumento um segundo Maupassant aparece, o Maupassant de Horla, aquele que deveria morrer louco, e também e sobretudo uma abordagem quase mística, telúrica em todo caso, da natureza circundante: mar, floresta, tempestades, neves, o germinar da primavera e do ciclo incessante e incessantemente recomeçado das estações. Se, em A Besta Humana de Zola, Renoir viu Gabin a ponto de estrangular com suas grandes patas Blanchette Brunoy, eu, em Une vie, havia visto uma mulher desesperada, à beira da loucura porque descobriu que havia sido enganada, desaparecendo para se esconder na floresta sob o volteio da neve. Eu havia a imagem desta vez - a neve - e a idéia, a de uma natureza ao mesmo tempo benéfica pelo seu sol e mortífera. Eu tinha o meu tema! Outra coisa, e que apenas aparentemente nos afasta do nosso assunto. Todo aluno de filosofia conhece “O Mito da Caverna” como exposto por Platão em A República, do qual lembro de algumas palavras: os homens, para Platão, estão sentados, acorrentados à parede dos fundos de uma caverna, em que são projetadas por uma fogueira que se encontra atrás deles as sombras sem consistência dos personagens reais, carregados de objetos preciosos, que vêm e vão pelo orifício. Nós, como os prisioneiros, nós não os vemos porque lhes viramos as costas. Nós vemos apenas suas sombras, suas aparências. Claro, bastaria abandonar as correntes e chegar à saída e ao sol para se apropriar da riqueza da vida verdadeira - as idéias.

Revertamos o mito e perguntemo-nos, ao inverso de Platão, se a sabedoria não estaria ao contrário em permanecer sentado como no cinema deleitando-se dessas aparições, no cinema em todo caso. Pois no cinema só se vê as aparências, isto é: o que a câmera viu antes de nós. Somos obrigados a confiar, pois só vemos o que ela viu. O que a câmera vê, e obriga o espectador a olhar, são as aparências: na verdade, é a própria realidade, é a vida, a verdade que ela nos faz contemplar. No cinema diremos que sim, mas e na vida?

Bem, na vida não é diferente. Vemos apenas as aparências e nós não as discutimos, apesar de alguns bons espíritos que querem nos fazer crer que estamos sofrendo de cegueira ou de astigmatismo, e que seria necessário procurar em outro lugar. É esta a lição dos professores de moral de hoje, o chamado politicamente correto! Temos a realidade diante de nossos olhos, mas eles nos designam as nuvens. Pode-se prolongar a lição e, para resumir, dizer que sob o pretexto de descobrir a verdade eles nos fazem voltar os olhos para a única luz, o que na história é chamado de Iluminismo. Ao passo que existe uma outra claridade, mais escura, mais subterrânea, mas mais rica em mistério que nos vem da escuridão, desse fogo central da terra que nunca, desde o início dos tempos, cessou de se consumir. Historicamente, esta é uma querela entre Sócrates, que procura a verdade, e aqueles que o precederam, os pré-socráticos: Thales, Heráclito, Zenão, Parmênides, a quem ele acusa de sofismo, pois se contentavam em dizer apenas o que viam, o movimento “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio” (Heráclito, O Ciclo das Estações).

O percurso dos astros na noite estrelada. Todo mundo, após dez mil anos, convive com essa idéia que se tem como uma evidência da razão. Mas vendo de mais perto, não é certo que neste combate desigual é Sócrates quem ganha. Basta ver a dificuldade que Platão tem em confundir seu adversário em Parmênides, que é sem dúvida o mais obscuro e de mais difícil compreensão dos discursos de Platão. Mas chega de aula de filosofia. Uma última palavra, porém: eu não tenho certeza se Sócrates, ao beber a cicuta, o fez não para provar a imortalidade da alma, mas porque tinha se dado conta do erro que havia cometido!

Para retornar e terminar pelo cinema, há um autor que particularmente admiro. É um argentino que se chama Borges e que diz muito melhor do que eu o que tentei exprimir. Acontece que em uma época a televisão tinha suficiente liberdade e não muitos aparelhos para os quais transmitir para que me propusessem de uma vez por mês levar a minha câmera, com alguns subsídios, e ir filmar o que passasse na minha cabeça. Foi nessa quase liberdade que decidi filmar Borges, suas Ficções que me haviam fascinado. Eu visitei o Jardim Botânico, filmei uma jaula em que rondava uma esplêndida pantera enquanto lia o texto de Borges, El oro de los tigres, e também conduzi minha câmera pelas ruelas sem nenhum personagem, filmando os caminhos que se bifurcam. Filmei inclusive, mas desta vez nos jardins do Instituto, uma história intitulada O Milagre Secreto: é a história de um juiz tcheco condenado à morte pela Gestapo. No momento em que vai ser fuzilado, ele implora aos céus de lhe dar um ano, o tempo de concluir sua tragédia. O movimento do travelling é interrompido, os figurantes são imobilizados e em seguida há três frases de Borges em que ele fala de uma misteriosa écloga de Virgílio. O movimento continua, os soldados atiram, o corpo tomba ao chão, acabou...

Falei sobre esses esboços realizados com o mínimo de meios exclusivamente para a TV, mas para mim, exceto a falta de recursos, não existe diferença alguma na minha maneira de filmar entre o que realizo para a grande e a pequena tela. Não creio por um segundo numa linguagem televisiva específica. Estas são besteiras, inventadas por pessoas que, na sua maior parte, jamais abordaram a grande tela por não serem capazes, e que pelo mais e pelo menos... Enfim, mencionei esses rápidos esboços para melhor ilustrar o meu ponto: a saber, que não existe nada, mas absolutamente nada que poderia ser chamado de uma adaptação... Nada a não ser a passagem de uma linguagem, que tem as suas leis, para outra linguagem, cujas leis, por mais paradoxal que possa parecer, integram-se às primeiras... E a tal querela dos autores de filmes é tão vã, tão inflada de vento como um exagero.

O autor de um filme é aquele que tem entre as mãos o poder de falar, de decidir, de julgar, ou seja, que é a câmera pela qual necessariamente passa a idéia que ele quer comunicar... Esse poder, mas também a capacidade: chegando em um platô, o diretor é desde o primeiro minuto julgado pela sua equipe que o abandonará no ato como um exército que desmascara o seu chefe porque sabe que ele não tem a força de caráter para conduzi-la ao fogo, isto é, para proteger sua vida, esse poder transcendente com o qual é investido.

No cinema não há um primeiro espectador, um chefe de orquestra que decifra uma partitura. Há um líder, e só um líder: cabe a ele provar isso.

Não posso concluir este breve relato sem uma palavra sobre o que no cinema aos olhos do público, que, em todo caso, tem sempre razão, é o essencial: quero dizer os atores e as atrizes.Travelling engenhoso, efeitos de luz, muito bem, mas tudo isso é mais ou menos um mecanismo mais ou menos habilmente organizado, genial em Ophüls e Visconti para destacar ao mesmo tempo em que integra na narrativa tal ou tal atriz, no lugar da qual não somos freqüentemente colocados, pois se ela é a heroína, a razão de ser de toda essa engrenagem, ela é também a vítima, a chaga e o fulcro, e por isso devemos perdoar-lhe todas as suas infantilidades, os caprichos que ela pode ter, suas crises de nervos, que refletem apenas um pânico intenso, pois ela sabe que há sempre para ela um momento de verdade, no momento em que se projeta, como uma máquina de matar, sobre os trilhos, a câmera que na passagem apanha o seu rosto e transporta para sempre de sala em sala sua beleza, a verdade, através do mais imperceptível piscar de olhos, sua alma presa na armadilha e espalhada aos grandes ventos.

O pé, disse o manual militar para uso de soldados de segunda classe, é o objeto de todos os cuidados. É também, ou pelo menos deveria ser igualmente assim, com as atrizes para os seus diretores. Sem pé o soldado não pode andar, e sem as atrizes um diretor não pode rodar. Por isso deve vigiá-la como um tesouro, com um olho de inveja.

Certa vez perguntei a Danielle Darrieux, modelo de espontaneidade, de talento natural e inato, como ela fazia para se entender tão admiravelmente com Ophüls, cuja reputação de maníaco da complexidade técnica e do entrecruzamento de trilhos de travelling e movimentos de grua havia se tornado lendária. Mas, respondeu-me ela com o seu adorável sorriso, ele mesmo vinha me pegar de manhã no meu camarim, beijava-me e me levava pela mão, enquanto me contava uma história engraçada, acompanhando-me com o mínimo de indicações técnicas pelo décor. Eu tinha, por assim dizer, a cena nos pés...

Eu gostaria de terminar esta apresentação bastante longa, que alguns julgarão com razão um tanto quanto austera, com três breves historietas que talvez os iluminem. São histórias de atrizes.

A primeira diz respeito à grande Bergman quando, ciente que seu caso com o seu grande amante latino havia de terminar, vê-se obrigada a filmar Anastácia, a Princesa Esquecida sob a direção de Anatole Litvak, um veterano para o qual ela não foi feita. No primeiro dia de filmagem ela é odiosa, discutindo a respeito de tudo, recusando qualquer indicação de cena. Litvak se curva mas não se deixa quebrar. Mas no terceiro dia, eis que ela se transforma numa adorável criatura, antecipando o menor desejo do seu realizador. Encantado, ele a convida para jantar e, durante a sobremesa, pergunta: Ingrid, agora que nos tornamos amigos, diga-me por que no primeiro dia você foi tão desagradável?. E, com um sorriso angelical, aquele de Interlúdio, ela responde: eu senti a sua força, Tola (o diminutivo de Anatole), eu simplesmente senti a sua força.

A segunda história é a de uma starlette que um jovem realizador quer escalar. Ele se envergonha, não sabe o que lhe dizer. Ela: se você quer que eu interprete o papel que você me propôs, senhor, comece olhando para mim diretamente nos olhos.

A terceira história não me faz honra, e aconteceu durante uma cena de Une vie. Maria Schell explode: “Jamais direi este diálogo que me ridiculariza e me ofende!” Ela sai, batendo a porta, e todo mundo senta no chão. Ela volta, acalmada, abraça-me e retoma o seu lugar, mas eu, idiota, sopro para Claude Renoir: “não há necessidade de colocar filme na câmera, ela interpretará tão mal...” Milagre, ela é genial, de arrancar lágrimas. Ela havia feito toda essa cena a fim de entrar no estado físico para rodá-la, mas eu, imbecil que era, compreendi apenas muito tarde. Apressei tudo para a câmera fosse recarregada. Ela já não estava tão bem na cena. Eu havia perdido a minha chance!

Uma última anedota: eu havia contratado para um filme de televisão que se chamava Une fille d’Ève uma jovem atriz porque ela conseguia dizer o texto, o que para mim era essencial. Tudo estava indo muito bem, restava rodar a última cena. Ela passa numa carruagem e olha pela última vez seu amante, Nathan (Mathieu Carrière), o qual vê se perdendo nos braços de sua amante. Balzac escreve: “... Ela lhe lançou um olhar de desprezo”, mas, e eu quis abraçá-la, ao invés desse olhar de desprezo foi um olhar de nostalgia que ela lhe lançou, no espaço de um instante. Essa jovem atriz havia compreendido Balzac melhor do que eu poderia ter feito, e que o próprio Balzac poderia ter feito...

Para resumir: o que há de fascinante neste trabalho é que ele é um reflexo da vida. Por mais que se façam inúmeras tomadas, não há mais rascunhos do que há na vida. Vive-se uma só vez, e um filme, como a vida, transcorre de uma só vez, e é a grandeza dos dois, sua riqueza, seu esplendor. Não há no cinema, assim como na vida, o direito ao erro, caso contrário paga-se o montante em peso de sangue.

Tão ligado que se possa ser às múltiplas felicidades que nos oferece a marcha de nossa existência, tão guloso que se possa ser dos prazeres terrestres, das idéias encantadoras, amante ao mesmo tempo da lagosta à americana e descobrindo um prazer quase sexual, não vejo a diferença, na leitura de Leibniz, por exemplo, ou no encantamento, cindindo o hemistíquio, dos mais finos e ao mesmo tempo mais cruéis alexandrinos racinianos, sabe-se, com uma pontada no coração mas que talvez multiplique esse prazer, que tudo isso só nos é dado uma vez, e que tal qual o Zenão de Elea, que voa e que não voa, a flecha se estica numa única direção sem retorno - eis o gênio de Proust, o do curso do tempo -, e o que é verdadeiro para a vida também é para o cinema, que sempre é, mentira suprema na qual a câmera nunca mente, uma imitação mais ou menos bem sucedida, um trecho, imaginário e real ao mesmo tempo, dessa única vida...

Ama-se o cinema - e eu diria que só se o faz corretamente, pois aqui fazer ou amar é a mesma coisa - como se ama a vida. Faz-se cinema, que me perdoem essa comparação, como se faz amor com uma mulher, mais ou menos bem, com mais ou menos excesso: é segundo uma questão de temperamento.

Arte ou forma de arte surgida quase no extremo fim da história desta civilização ocidental que é a nossa, e tomando emprestado desde então de todas as formas de arte que a precederam e pelas quais esta civilização ocidental se exprimiu - da música de Bach o ritmo e o contraponto; da pintura de cavalete de Tiziano, de Tintoretto, de Velázquez, de Caravaggio não somente o quadro e a perspectiva, mas essa organização teatral das coisas; dos romances de Cervantes, de Rabelais, de Diderot, de Balzac o movimento e o curso inevitável do tempo -, o cinema, pois falamos no passado, terá sido o momento privilegiado e a forma própria por onde se deixou ser pega pela armadilha, representada, idealizada talvez, a própria vida, a vida humana pelo menos, a realidade e a verdade, nesse momento, hic et nunc, deste mundo que marcha sem o saber, ao mesmo tempo em que o sabe, rumo à decomposição, uma agonia ainda mais inelutável pelo fato de que as melhores mentes desta época parecem ter concordado para trabalhar em concerto sua oração fúnebre.

O que é em definitivo a mise en scène, senão a organização das trevas à luz de uma idéia fixa?

Ela nos conduz, essa mise en scène cinematográfica, esse arrebatamento lírico, acima dessas elaborações que se elevam ao sublime e que são, que terão sido, por exemplo, A Paixão Segundo São Mateus de J. S. Bach, onde o contraponto não exerce apenas o papel de regulador mas de metteur en scène, como a cesura ao hemistíquio nos alexandrinos de Fedra, que bem valem alguns projetores em eficácia lírica, ou as últimas linhas das palavras trocadas entre Lucien de Rubempré e Carlos de Herrera, vulgo Vautrin, ao fim de Ilusões Perdidas, nos conduz enfim, nessa melodia do tempo, à tragédia grega, onde tudo começa e tudo acaba e onde a ordem dórica apolínea, arrebatando-nos in extremis pelas lamentações do coro que chora o seu deus Dionísio todo manchado do suco de amoras violetas, deixa intacto esse conflito que dura ainda e que ainda não cessou de opor às leis caprichosas da cidade aquelas imprescritíveis, não escritas, sobre as quais está fundada desde sempre a própria perenidade da nossa condição humana...

Por quê?

Porque o cinema é representação, imagens da vida, meditação, é o acompanhamento consciente desse movimento para a frente que incessantemente e consistentemente o conduz - “out, out, brief canons” (Otelo) - rumo ao que Shakespeare chamava de “the last syllabel of recorded time”.

Imagens encantadoras, beleza dessas imagens, imagens dessas riquezas, múltiplos esplendores, flores suntuosas, festas, fragmentos de eternidade, felicidade louca, de um lado, que a vida vos oferece, e do outro, fazendo-nos pender sobre essa beleza, o olhar sobre ela posado, e que já era o de Velázquez ao colocar seu cavalete no canto do seu Las Meninas.

Podemos entender somente agora, seguindo pelo olhar, por exemplo, o espectador que com a luz acesa sobre a tela vai, na noite que cai, reencontrar sua rotina diária, mas meditando apesar de si mesmo sobre o breve encantamento que essas imagens lhe proporcionaram. Para compreender o que queria dizer esse Proust que me permiti chamar em meu auxílio ainda no início... Pois se a beleza das imagens está localizada na parte de trás das coisas, é essa beleza que o espectador imaginário, ao ir embora, deixa para trás, após ela o ter impressionado pelas suas imagens.

Ao passo que o segundo tipo de beleza, o das idéias, é só agora que ele a entende, agora que ela se oferece a ele na sua meditação e pelo próprio fato que está a ponto, ao seguir em frente, de ultrapassá-las.

É assim com toda forma de espetáculo: ópera, balé, mas também o do mundo em particular - não falo do além -, empanturrado, repleto de imagens, de nutrientes dos quais provamos em excesso os esplendores, um tempo que vem à mente de cada um no exato momento em que, assim como no nascimento a parteira corta o cordão umbilical e lança o recém-nascido como um balão para a vida, a tesoura do coveiro corta a corda que ainda mantém o caixão acima da lama do sepulcro.

A idéia que remete ao seu lugar, exaltando ou reduzindo, aquilo que Malraux chamou de pilha miserável de segredos - tudo aquilo que vivemos.

É à beira da morte, eis o que quis dizer Proust, que nós vemos a beleza das idéias, nesse instante fatal em que nós enfim as ultrapassamos, e é em pleno prosseguimento desta vida única que nós vemos a beleza das imagens, no momento em que e porque nós as vivemos...

E é isto, sem dúvida, o que pressentimos cada vez que, com o seu tique-taque no silêncio que se faz na sala, começa a ronronar o motor do aparelho de projeção, que remete àquele que todo cineasta conserva no fundo do seu coração. Porque ele pode dizer, até mesmo gritar, a que para ele é a palavra de amor mais doce, mais louca...

Câmera!” “Rodando”, responde o eco. Então AÇÃO...

(31 de Março de 2005. Traduzido por Bruno Andrade, recolhido da edição de Junho de 2012 da revista Foco.)

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Cinema em vinte passos

Conexão

Daniil Kharms

Filósofo!

1. Escrevo-lhe em resposta a sua carta, que o senhor está planejando escrever em resposta à carte que eu lhe escrevi.

2. Um violinista comprou um imã e o levou para casa. No caminho, arruaceiros atacaram o violinista e lhe derrubaram o gorro. O vento arrastou o gorro, levando-o pela rua.

3. O violinista colocou o imã no chão e correu atrás do gorro. O gorro foi parar numa poça de ácido nítrico e então se reduziu à pó.

4. Enquanto isso os arruaceiros pegaram o imã e fugiram.

5. O violinista voltou para casa sem sobretudo e sem gorro, porque o gorro se reduziu a pó no ácido nítrico, e o violinista, desolado por ter perdido seu gorro, esqueceu o sobretudo no bonde.

6. O motorneiro desse bonde levou o sobretudo para o mercado de pulgas e o trocou por creme de leite fresco, cereais e tomate.

7. O sogro do motorista empanturrou-se de tomate e morreu. Levaram o cadáver do sogro do motorista ao necrotério, mas depois o confundiram e no lugar do sogro do motorista enterraram uma velhinha qualquer.

8. No túmulo da velhinha colocaram uma coluna branca com a inscrição “Anton Serguêievitch Kondrátiev”.

9. Durante onze anos vermes carcomeram a coluna e ela caiu. O sacristão serrou essa coluna em quatro pedaços e a queimou em seu forno. A mulher do sacristão preparou uma sopa de couve-flor nesse fogo.

10. Mas quando a sopa já estava pronta, caiu uma mosca da parede bem na caçarola em que estava a sopa. Deram a sopa ao pobre Timofêi.

11. O pobre Timofêi tomou a sopa e contou ao pobre Nikolai sobre a bondade do sacristão.

12. No dia seguinte, o pobre Nikolai foi à casa do sacristão e pôs-se a pedir esmola. Mas o sacristão não deu nada para Nikolai e o enxotou.

13. O pobre Nikolai ficou extremamente furioso e pôs fogo na casa do sacristão.

14. O fogo se alastrou da casa para a igreja, e a igreja se consumiu.

15. Conduziu-se uma longa investigação, mas não foi possível determinar a causa do fogo.

16. No local onde estava a igreja construíram um clube e no dia da inauguração do clube organizaram um concerto, no qual se apresentou o violinista, que catorze anos antes havia perdido seu sobretudo.

17. Entre os espectadores, estava o filho de um daqueles arruaceiros, que, catorze anos antes, derrubaram o gorro do violinista.

18. Depois do concerto eles foram para a casa no mesmo bonde. E, no bonde que vinha atrás deles, o condutor era aquele mesmo motorneiro, que, um dia, vendera o sobretudo do violinista no mercado de pulgas.

19. E lá vão eles pela cidade afora, tarde da noite: na frente — o violinista e o filho do arruaceiro, e, atrás deles, o condutor — o antigo motorneiro.

20. Vão sem saber da conexão entre eles, e morreram sem saber.

(1937)

Tradução de Graziela Schneider

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Sobre chutar cachorro morto

Algumas notas sobre o oscar não visto (a internet providenciou os "melhores momentos"):

1. A apresentação do Chris Rock foi muito boa; "nós não protestávamos contra o Oscar em '62, '63, estávamos protestando contra coisas reais": manter as coisas em perspectiva. O Oscar é a festa de frivolidade e protestar contra isso já é uma forma de frivolidade.

2. Sobre os filmes e quem ganhou ou deixou de ganhar, não comento, porque da lista dos "melhores filmes" só vi  Mad Max: Fury Road, que me pareceu incompreensível na primeira vez que vi, em 3D, e, numa revisão em 2D se sai muito melhor. Estranha compulsão em fazer filmes em 3D que não pedem por isso: a geometria da ação em Mad Max em linha reta funciona somente em 2D, dentro de um controle maior do movimento dentro do plano. Ao frenetismo da ação, Miller impõem ordem. Da outra forma, eu não consegui ver o filme, nenhuma imagem se fixava. O 3D, diferente da cor ou do som (duas revoluções no cinema com as quais é frequentemente comparado), ainda não mostrou ter real utilidade à ninguém que não às cadeias de cinema e aos estúdios, que cobram mais caro por um filme exibido nesse formato. Isso e a oportunidade de escolha entre ver o filme em 2D ou 3D confirmam, pelo menos para mim, a inutilidade do formato. Concordo com Inácio Araújo quando ele afirma que o 3D funciona melhor com o irreal, com as imagens fugidias do sonho. Mad Max, por outro lado, me pareceu depender inteiramente da concretude de sua decupagem. Miller é um diretor que vende o irreal com real. 
   (Fiquei desapontado com a derrota do Stallone, e menos surpreso do que esperava com a vitória do Iñárritu, diretor da moda, sinuoso e ectotérmico, muda de pele a cada filme. Por outro lado, achei hilária a reação do Morgan Freeman ao ler Spotlight como o melhor filme. Era algo entre irritação e incompreensão, uma resposta à cerimônia inteira, talvez.).

3. A sessão do programa que "honra" os falecidos do ano, usualmente muitos excecutivos anônimos entre os rostos mais conhecidos, me serve de sismógrafo para entender essa cerimônia industrial e insólita. É quase como uma tentativa de escrever uma pequena história do ano no cinema, quem merece ser lembrado, e quem merece ser esquecido. Acho que desde a ausência da Danièle Huillet da lista não ocorria tamanho disparate. Ignorar gente como Manoel de Oliveira e Jacques Rivette (e Setsuko Hara, Roddy Piper, e muitos outros) serve como uma declaração de princípios da premiação e do mercado e publicidade em seu entorno e alimentados por ela. É uma clara demarcação, um celeiro, do cinema. Para o Oscar, grande parte do cinema não existiu, e não existe. A cada ano, o senso de isolamento e insularidade aumenta, a festa diminui. 
  Mas nada disso realmente importa. O cinema (os filmes) é, felizmente, grande demais e o Oscar, pequeno demais e do mesmo tamanho do audiovisual. Serve somente para os trambiqueiros ganharem seu pão. 

E a melhor análise do Oscar: essa.

Dedicado à Glória Pires.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Arrebato

Marcelo Ribeiro:



Arrebato (1979) é o ápice da carreira cinematográfica de Iván Zulueta na minha opinião, atinge um grande nível de sofisticação formal dentro da estética que o diretor já vinha ensaiando, ao mesmo tempo em que proporciona a dramaturgia uma potência entre os elementos que torna a sua movimentação uma consequência da força interna da escolha estética e a partir daí não é mais necessário estímulos externos ao enredo.

A questão dá pausa formal é recorrência no filme, porém, é perfeitamente possível criar um discurso em que a pausa é um oposto para o arrebato, é possível, também, de maneira fácil sair desse discurso. Mas assistindo Arrebato é difícil enxergar aonde a fuga em direção a pausa não gera um caminho em direção ao arrebato. Por isso, talvez, o protagonista (Pedro) esteja correto sobre o fato de que se ele assistir seu filme inteiro, esse filme irá lhe consumir do modo mais romântico (romantizado) possível.

Não sei dizer se a realização de Arrebato é esse filme que consome o diretor, mas o fato é que depois de Arrebato a carreira de Zulueta se consumiu, ele nunca mais fez algo similar e praticamente deixou de fazer filmes. O outro protagonisa (José) segue o mesmo caminho de Zulueta, abandona uma aventura guiada pela segurança estética do aparato formal e parte em busca de uma irreversível e maluca tentativa de filmar o outro lado do cinema. Iván Zulueta foi precoce na realização do movimento que o cinema mundial fez nos anos 80, quando abandona a segurança de uma experimentação entregue à fé dos anos 70 e emerge em uma dramaturgia confusa e totalmente calculada dos anos 80.

Para mim é muito difícil falar desse filme sem tratá-lo de maneira que prioriza o formal e o místico, Iván é um diretor, em grande medida, formal e mistificado. Bem conhecido pelo trabalho que vinha realizando, antes de Arrebato, em janelas menores que o 35; o diretor construiu uma experiência profunda no ato de filmar movimentos aleatórios com a técnica do cinema. O movimento testado sem pretensão dramatúrgica e meramente necessário e ensaístico é o mesmo movimento que anos depois gerou o esqueleto para que em Arrebato, como diz o próprio diretor, o desafio do campo contra campo tenha sido uma realização

Após esse filme Iván Zulueta se tornou um cânone, o filme veio a calhar como (e com certeza é) um fruto do período de enfervecimento artístico que procedeu a morte do ditador Francisco Franco. A relação entre Zulueta e o mito do filme é sem grandes enfeites, ele após o agitado fim da década de 70 se envolve com o vício de heroína, assim como os personagens de Arrebato, e passa toda a década de 80 em tratamento, se mantém como artista, mas o cinema esfria. O que não lhe impediu de se tornar um grande colaborador gráfico dos excelentes novos diretores espanhóis que vieram depois dele, que com certeza foram influenciados pelo símbolo que Arrebato criou.

O filme como é de se esperar acaba em um Arrebato total. Representa, pelo menos para mim, o final de um projeto estético bem sucedido que se espelha nos romantismos aonde a técnica deixa de interessar. Interessa a exatidão da pausa, ultrapassar o chamado sabendo que a arma retórica não é só uma questão de matéria prima ou do seu talho, também não diz respeito ao que achamos ser a essência das coisas. Repetir os mesmo erros de qualquer um dos citados no texto seria burrice. Contudo, recriminar é usual para quem quer fugir para o conforto.