Manny Farber
Como muitas palavras usadas ao falar de filmes, a palavra "teatral" é vaga e frouxamente aplicada, usualmente como um termo de desprezo. Já que eu a uso tanto e porque eu acho que é um termo importante na crítica de cinema, eu gostaria de dar a minha definição dela.
O uso de "teatral" como a descrição de um filme depende essencialmente do modo em que os eventos do filme estão relacionados com o olho da câmera. Se os eventos são arranjados para ocorrer como se não houvesse câmera presente, se a câmera meramente assiste e grava como aqueles eventos se dão, o filme é, ao meu ver, da verdadeira natureza de um filme: quer dizer, é não-teatral, e em vias de se tornar uma anomalia nesses dias. Nesse caso, se verá a atuação e procedimento dos eventos serem impulsionados somente por fatores de dentro do próprio evento, independente da câmera. Portanto, se os eventos não são tratados como espontâneos, acontecimentos inalteráveis testemunhados por uma câmera impessoal, mas são arranjados perante ela como se ela fosse o olho da platéia e os eventos se desenvolvessem para que eles pudessem serem vistos pela câmera, no papel da platéia, o processo é essencialmente teatral. Trata-se então de uma reencenação para uma platéia — o processo não é mais o de assistir uma ação mas o de uma atuação para aqueles que assistem. A diferença entre o filme teatral e o não-teatral é mais sentida quando, vendo um filme verdadeiro, se sente que aquilo foi assistido pela câmera em uma maneira a deixar aquilo com uma vida própria, que acontece sem se referir para uma platéia — claramente não a atitude do palco. Toda a complexidade de relações (ator para ator, ator para lugar, etc.) é consistentemente interligada, procedendo como se alheio ao diretor, escritor ou operador. Os melhores filmes de Clair, os filmes ingleses de Hitchcock, Ouro e maldição, de von Stroheim, os melhores trabalhos russos, os filmes de Griffith, a versão francesa de Crime e castigo são exemplos de filmes que procedem sem serem molestados pela ideia da platéia.
Quando um filme é chamado de teatral é convencionalmente pensado que se trate de um filme estático em termos de locação, falastrão, ou ambos. Contudo, a cena do discurso improvisado de Donat para a reunião política, em Os 39 degraus, de Hitchcock, é ambos, e ainda é essencialmente cinematográfica por causa que a atitude em filmá-la foi aquela de assistir impessoalmente, com uma aderência estrita para o curso inviolável da corrente de eventos, de achar de momento em momento a coisa mais significante para ver: isso é, as relações dentro do evento nunca foram sacrificadas pela relação entre a cena e a platéia. De outro lado, o último filme de Hitchcock, Um barco e nove destinos, é eminentemente teatral, mas não porque é cheio de diálogos e confinado em um mesmo set. Sua teatralidade está no fato que tudo é um arranjo no qual a platéia não está, como deveria, fora do evento, mas é a principal pessoa no barco, a pessoa a quem todos falam e a quem tudo está acontecendo. O evento que está supostamente ocorrendo perde convicção a cada momento por causa disso — simplesmente não está ocorrendo em um barco salva-vidas no meio do oceano mas bem na sua frente em um palco. As personagens estão constantemente ultrapassando os limites da cena num discurso que se divide da cena devido ao fato que suas palavras não são mais dirigidas e provocadas pela situação mas pela platéia. É por isso que esse filme, e a maioria dos filmes de Hollywood, são visualmente enormemente inadequados ao conteúdo do enredo.
O fato de que um filme é menos teatral quando a atitude em construir a ação é “como o evento aparece?” é dependente do fator inicial no processo do filme, a câmera, que é, em termos simples, uma máquina para gravar o diário visual de um evento. O filme que quebra e projeta eventos para fazer deles uma peça perante a câmera imediatamente destrói a felicidade da câmera: não sobra mais evento, apenas representações dele, e a preservação da pureza do evento é a razão de ser da câmera. Igualmente, o filme que é visto às avessas, através de uma complexidade de ângulos espetaculares de câmera, não é menos teatral por, novamente, destruir a função principal da câmera para fazer dela a principal animadora no processo do cinema — além de ser vulgar.
A maioria dos roteiros [scenarios] hoje são escritos com tanta falta de consideração em mostrar suficientemente os eventos que o total da história e personagens pesa mais do que o produto visual final; depois que você ouve o som desses filmes nunca mais você será influenciado por suas ideias, porque essas ideias raramente são igualadas, comprovadas ou sintetizadas pelas imagens do filme. Há realmente uma confiança anormal em Hollywood em quão bem eles conseguem projetar qualquer emoção ou evento em termos visuais: então em filmes como Um barco e nove destinos e Casablanca — os dois filmes teatrais mais populares que pude pensar no momento — você vê os diretores e escritores tentando uma execução visual de tudo desde jazz até pronunciamentos sobre a história da última década, atirando pelo caminho contra argumentos de amor, intriga e da natureza da guerra, e na verdade dando apenas uma inexata e efêmera pista dessas coisas e jamais nesse meio tempo chegando sequer remotamente de uma verdade em cinema. É minha opinião de que o fascínio desses dois filmes está em um fato visual, aquele de ver pessoas vitais e de aparência revigorante, mas não em nada do que estão fazendo ou dizendo.
New Republic, 14 de fevereiro de 1944
Tradução de Gustavo Salvalágio.
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