sexta-feira, 17 de julho de 2015

Abismu

Segue um texto do amigo Marcelo Ribeiro:























“Abismo” é um filme tão melancólico quanto “Signo do caos”, feito durante época de ruptura para o diretor (inclusive, é posterior ao “insucesso” de mercado da Belair). 

“Abismo” é uma excelente pista para quem quer entender o desculpismo que reina em relatos que isentam diretores em relação à responsabilidade sobre os filmes que não fizeram. Sganzerla sabe que os filmes feitos são postos em igualdade aos que não foram feitos, sua carreira é demarcada em muitas situações por isso (assim como a de Welles). A falta de comprometimento com uma identificação estilística – de futuro – é possível devido ao limite material que restaurou a carreira de Sganzerla após o exílio; incômodo e benefício que Sganzerla, pelo que tudo indica em seus textos, “teve” de viver até o fim. Esse “teve” pode ser obrigação ou também: única opção ética possível. “Abismo” assim como “Signo do caos” tem cara de último filme por que lida com uma opção ética sem volta e sem continuação; o último filme é a única e última opção que cabe ao diretor fazer quando resolve filmar algo onde a ética é um ultimato. 

Cinematograficamente o filme se realiza de modo comum, porém ao se invocar o prosseguimento de carreira (jurisdição do cinema moderno – responsabilidade de futuro) no sentido de transformação retórica dentro de um comprometimento temporal “Abismo” não se mostra como discurso. Pelo contrário, os sons de guitarra brilham dentro de uma montagem amarga, o amontoado consciente de Sganzerla não resiste à opressão (as críticas do fim da década de 70 demonstram a mesma amargura, porém, agora como desistência). Contudo, o brilhante de “Abismo” está exatamente nisso, mesmo com o desestímulo, a cabeça alimentada pela câmera encontra um ritmo apaixonado e um fim de uma carreira que daria certo. “Abismo” é bom porque Sganzerla desiludido se despe do seu “cinema novismo” e esquece o relevo; filma a relação do que se vê num filme: um monte de coisas vividas que formam planos, a mundanização do cinema de Sganzerla em “Abismo” ultrapassa a carreira possível para ele – do gênio. O melancólico centro da abdicação do conhecimento descritivo do instituir está (e nunca ganhou) em combate com a impossibilidade de fazer um cinema realizável, de mostrar um filme para alguém, o que não é sinônimo de filmar para alguém ver. O solto do filme é a construção de um laço potente de futuro irrealizado, ilegível situado para mundanizar o cinema com suas esperanças metodológicas constituintes de um fundamento simplesmente não-cronológico, e já há bastante tempo, antevisto pela necessidade de sobrevivência – pelo direito de filmar construindo o que lhe vem, corrói para fora.

“Abismo” comprova que o fato de Sganzerla estar no centro de convergência de um cinema de figuras de força social não quer dizer que seu fardo de testemunha deva lhe forjar socialmente como cineasta que continua a vida. “Abismo” não tem o situacionismo do relato que forja o cineasta do infortúnio e da esperança dos primeiros filmes. O cinema moderno se mostra como mais um dos variados satélites da idolatria social e Sganzerla sabe disso. Uma proposta na mesa extraída do medo de unidade, talvez seja essa uma boa definição para o cinema moderno determinado em cumprir o projeto de fazer filmes que façam o enfrentamento entre artista e o mundo. 

Pouco se sabe quando se evoca “efetividade” de um filme no mundo, filmar movimentos traduzidos de sentimentos literários e quase que o mesmo que explicar o filme feito. O diretor de “Abismo” já é um diretor que decupa sem tensões, cinematográfico, pois já sabe onde a luz surge, luz muito própria à felicidade e falta de vontade em recuar que Welles ensinou. 

O filme flexiona causas sobre a localidade e seus desdobramentos na potência, o argumento trata de lidar com a questão que paira sobre qualquer vontade de instituição (é dual), é um filme feito sem antielitismo que não persiste no contato singular entre a base linguística e o corpo a corpo que fricciona um dom até torná-lo maior que o cinema (não se preocupa em permanecer). “Abismo” assim como os filmes de Shakespeare de Welles me parece uma forte luz para fora da cacofonia do cinema moderno. A montagem dos planos deve fortalece uma identidade viva de se ter consciência da postura e o som não pode ser desculpa para não pensar.

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