Em certa altura desse filme admirável – já mais perto do fim que do início – há uma misteriosa cena entre a avó da família e sua neta. A avó passou o filme inteiro moribunda, e sua neta viveu a culpa (imaginária ou não) de haver colocado a avó naquele estado (a avó teria tido o colapso depois de ter, ou não, levado o lixo para fora, tarefa da neta). Mas nessa cena essa avó está sentada ao lado cama, sem explicação, e dobra um origami. A neta se deita, cabeça no colo da avó, e pergunta “por que o mundo é tão diferente do que pensamos que fosse?”. A avó nada fala, apenas sorri enquanto acaricia os cabelos da neta.
Tudo muda. Quando a neta acorda, vê movimento no apartamento da família. Médicos e enfermeiras entram e saem. O pai conversa com um médico, na porta do quarto da avó. Entra o filho pequeno da família. Ele vê um dos enfermeiros levando um cilindro de oxigênio para fora do apartamento. A avó havia morrido. A neta olha para a porta entreaberta sem entender. Sente que tem algo na mão. Olha e vê que é o origami que a avó havia feito.
Essa é uma das muitas cenas que explica o duplo movimento do olhar dentro do filme: o que passa e o que permanece, o que está na frente das coisas e o que está atrás delas. Porque Yi Yi (que aqui recebeu o inexplicável e hilário título de “As coisas simples da vida”) ocorre entre esses dois pólos. Trata-se de uma sucessão de opacidades e reflexividades. É opaco porque é reflexivo e é reflexivo porque é opaco, numa relação de solidariedade. Como os personagens dentro de seus apartamentos, vistos de fora, por nós, e através do vidro de suas janelas, há no filme essa dupla camada: o que está na superfície e o que há por detrás disso. Nem sempre vemos esses dois lados com clareza, e nem sempre um lado incide diretamente sobre o outro. Se, por um lado, a clareza do registro nos permite entrever aspectos da vida interior dos personagens, essa mesma clareza também serve para ocultar outros aspectos. Do mesmo modo em que os personagens estão encerrados na arquitetura de Taipei, em apartamentos, escritórios, salas de aula, restaurantes, o plano também segue o desígnio de encarcerar os personagens. Eles se movimentam continuamente durante o filme, mas parecem não poderem sair do lugar. (No Japão, N.J. ainda assim não escapa de Taipei, tanto como não pode escapar à sua biografia).
Dito de outro modo, a complexidade desse filme repousa sobre uma economia de efeitos. Como se Yang dissesse “é só até aqui que vou, mostro as coisas até certo ponto, até o ponto onde as conheço.” É crucial a frase do menino Yang-Yang: “por que só podemos conhecer a verdade pela metade?”. Mas, longe dessa economia criar um distanciamento (como em Tati, por exemplo), aqui ela demonstra respeito. Respeito para com os personagens, seus dramas, as situações em que se encontram. Na montagem, isso aparece mediante o uso de elipses, espinha dorsal do filme. Como se, ao pular certos momentos dramáticos (entre eles um assassinato), Yang achatasse o filme, para que nenhuma cena tivesse especial ênfase, mas que o filme fosse, ele próprio, um todo coerente de grande ênfase. Para que se contrapusesse os detalhes do enredo (isso é, a vida interior dos personagens) ao mundo externo, para que fosse o tempo do mundo, e não da narrativa, que fosse o fio condutor do filme.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirótima crítica, meu amigo. Despertou me o apetite pelo filme. Obrigado.
ResponderExcluir