As fotos no início do filme, cacoete de O som ao redor que inexplicavelmente se manteve, deu o tom do movimento que o Kléber Mendonça Filho fez daquele primeiro a esse: é sair do interior (Brasil, Pernambuco, Recife, que seja) ao litoral. Movimento inverso àquele da história brasileira, que a partir do litoral foi conhecer o interior. Aquele primeiro filme era fechado aos condomínios enjaulados, nesse a Dona Clara sacode a cabeleira vasta diante do janelão de seu prédio à beira mar. KMF parece querer se desvincilhar um pouco daquele primeiro filme ao escolher como foco uma única personagem, e não alguns núcleos fechados de uns poucos personagens. Se no Som ao redor esses núcleos de personagens gravitam em torno um do outro, sem jamais se tocarem, em Aquarius existe a presença de Clara para servir como o centro nervoso do filme. Se dá aí a primeira e mais crucial falha do filme: enquanto personagem, falta a ambiguidade* necessária para que Clara sirva com motor do filme (Sônia Braga, enquanto personalidade, se esforça até onde pode). Não que haja algo errado em se escrever personagens assim: Godard procedeu dessa forma na primeira fase de sua carreira, e Hitchcock antes dele. Mas nesses casos havia estrutura o suficiente naqueles filmes para suprir aquelas carências. Aqueles filmes partiam de fora para dentro. Havia uma estratégia geral ao qual os outros elementos dos filmes se conformavam. KMF tem talento para seguir esse caminho, mas sabotou seu filme na tentativa de fazer um "filme de personagem". Centralizar o filme nessa personagem sem ambiguidade (porque ela serve mais, parece, como porta voz de algumas opiniões) fere o conjunto geral do filme, e tira fôlego de sua principal força, que é a habilidade do realizador de criar um ambiente de suspense e perigo (habilidade melhor explorada em seu filme anterior, na medida em que ação se dava de forma mais predatória).
A rigor, o filme é o primeiro ato de um roteiro de três: ele acaba no ponto em que o conflito se abre, e encontrou meios para se estabelecer e puxar a história do filme. Do modo em que nos é apresentado, Aquarius funciona como um conflito que se introduz e é logo abandonado, substituído por uma série de distrações (aniversários, noitada com as amigas, orgia, banhos no mar, caminhadas na praia) e vem a ser retomado apenas nos momentos finais da projeção, quando ele ainda está bem longe de sua conclusão.
Entretanto, pode-se argumentar que o filme terminar nessa aporia é coerente com a história de nosso país. Nossa história foi uma sequencia de falsos começos e de interrupções constantes. Então nosso cinema, como todos os outros elementos de nossa vida cultural, acompanha essa conjuntura. Grosso modo, "resolver" o cinema nacional seria resolver o país Brasil. Nossos melhores filmes entendem que existem dentro dessa contradição. Mas a diferença entre aqueles filmes e esse é que aqueles, enquanto filme, se resolviam. A revolução de Paulo Martins falhava junto ao projeto de país anterior ao Março de 64, mas o filme nos legava um final coerente com essa derrota e inércia. Carlos, ao tentar fugir de São Paulo, acabou por condenar-se, perpetualmente, a voltar àquela cidade e àquela vida.
Os dois finais que citei são heterogêneos, mas são finais. No filme de KMF, embora a colônia de cupins seja uma ideia perspicaz, (o que não é a mesma coisa que inteligente), ela perde sua força por não ter sido explorada dramaticamente. Da mesma forma que o câncer de Clara engoliu seu seio, os cupins corromperam o prédio que dá nome ao filme; mas, da mesma forma que não vemos o câncer de Clara (que nessa altura é mera memória, como o Aquarius é mera nostalgia), não vemos a ação dos cupins, como também mal vemos a ação dos agentes imobiliários, eles próprios cupins (essa ideia me parece ser defendida pelo filme, ponto ao qual retornarei mais adiante). Significa dizer que, em lugar de metáforas, que funcionam a partir de imagens, o filme opera através de símiles, algo semelhante à sinalização das placas de trânsito (Cuidado: Personagem coxinha à direita). Não que não possa haver uma equivalência entre o câncer e os cupins, mas no filme eles existem apenas enquanto essa conexão "câncer = cupins", ou "cupins = corretores", é apresentada. Quando descobrimos, juntos de Clara, da existência deles, já é tarde demais, tanto para o prédio quanto para o filme. Em lugar de qualquer solução formal, cênica ou dramatúrgica, a estratégia de KMF é buscar significado em equiparações de elementos que não se equivalem, ou, cuja equivalência é forçada pelo realizador.
Isso está bem demonstrado, creio, na longa cena de diálogo entre o jovem corretor de imóveis e Clara (com sua empregada, fiel escudeira, Sancho Pança para o seu Dom Quixote). Em termos de classe há pouca, ou nenhuma, diferença entre Clara e o corretor. São duas espécies em decadência, membros da mesma elite faminta. Diferença crucial aqui é o álibi cultural de Clara: versada na cultura pós-1964, liberal nos costumes, "amiga" de seus subalternos (ou, maldosamente, uma rainha no castelo-Aquarius, com seus súditos fiéis, seja a empregada ou o salva-vidas); em suma, Clara é "de esquerda". Mas aos olhos do discurso do realizador, ela não é igual ao corretor, que em algum ponto do filme é revelado ser um evangélico (não que isso demonstre, por si só, algo, mas o filme mostra essa fato como ponto de diferenciação irreconciliável entre Clara e o corretor). Porque, então, no corpo da montagem, via campo-contracampo, o filme os coloca como iguais? Ou, pela boca do personagem do corretor, que inclui Clara em sua classe, mesmo que ela não queira reconhecer esse fato?
Daí resulta a verdadeira ambiguidade do filme, aquela que surge mediante uma incoerência no discurso. Clara não pertence mais ao mundo das elites, como também jamais pertenceu ao mundo em que vive sua empregada (demonstrada na cena em que a empregada lhe mostra a foto do filho que morreu, para desconforto geral), por mais que ela se esforce em querer participar da vida dela. Daí, também, a incompreensão de seus filhos diante da recusa da mãe em vender o apartamento (e essa recusa é único motor dramático do filme): Clara se recusa a sair da nostalgia desse Brasil que se perdeu, se é que chegou um dia a existir, do mesmo modo em que se recusa a sair do Aquarius, como a criatura no zoológico que aprendeu a amar as barras de sua jaula. Carrega consigo essa nostalgia, como carrega a cicatriz do seio que perdeu.
*Ambiguidade aqui como algo distinto de "profundidade". Clara parece se conformar a um "tipo" (mulher-liberal-brasileira-das-grandes-capitais-aculturadas) antes de ser um meio para a ação. Falta ambiguidade a ela, talvez, porque saibamos demais dela. Um personagem monomaníaco, como o Ethan Edwards, por exemplo, me parece mais vivo, por haver zonas de mistério acerca dele, que nubla nosso entendimento de suas motivações (por que não matou a sobrinha? por que decidiu não ficar na casa? quais foram suas ações durante a guerra civil, e por que demorou tanto a voltar para casa, mesmo com a guerra já terminada?). Clara, por outro lado, permanece sempre um "tipo", até por que a ação do filme não a leva a contradizer esse fato. E ela não se aprofunda como personagem porque, suspeito eu, a ação do filme é essencialmente passiva, até os instantes finais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário