segunda-feira, 13 de junho de 2016

Até quando nosso cinema vai ser o velho Glauber?

Pergunta o amigo Lenon Oliveira:

O velho Glauber é o Glauber novo, jovem. Aquele que berrava a importância que o cineasta-messiânico tinha para salvar o povo brasileiro de sua aculturação. Messianismo que caracteriza o cineasta brasileiro, que canaliza sua potência artística para a resolução e contestação dos problemas nos âmbitos social e político. Esta característica é exaltada de maneira exacerbada, tornando então o cineasta um ser exclusivamente, e necessariamente, engajado político-socialmente. Esta chaga deixa clara a unilateralidade do artista prevista por esta visão politizada de sua função (mas ha de ter função?).


Esta verve social do cineasta advêm de uma leitura cansada e maçante que foi feita dos propósitos cinemanovistas, em especial a de Glauber Rocha. O Cinema Novo, ou esta leitura predominante do movimento, flerta com uma teleologia marcadamente social e política, deixando o cineasta na posição de messias que PRECISA escancarar os problemas dessas ordens para então abrir os olhos do espectador. 

Não é esta leitura que impregnou o desenvolvimento cinematográfico brasileiro? O cinema que está a serviço dos problemas sociais e políticos, precisando, necessariamente, levantar bandeiras ou deixar clara suas posições de engajamento, que carrega o dom do sacerdócio cinematográfico; é o cinema eclesiástico, unilateralmente importante por ter que ser engajado, militar ou flertar com uma causa. Não é este o retrato do cinema brasileiro contemporâneo? Que bebe da fonte cinemanovista – e se embriaga dela?

Apesar de citarmos e lembrarmos dos cineastas “marginais”, parece que não apreendemos (ou simplesmente não os lemos, nem os vimos suficientemente) o seu legado insistentemente antiteleológico que atacava por excelência o Cinema Novo e suas proposições messiânicas. Esta vertente de pensamento possibilita a polivalência, que a meu ver, é essencial a cineastas ou artistas em geral. A leitura crítica predominante politiza até aqueles que fundamentalmente não se preocuparam com politizações e ideologizações baratas.




A crítica cinematográfica que é responsável pela formação, transformação e caracterização do cinema brasileiro – mesmo que à revelia dos próprios cineastas, e isso não faz diferença – carreou e lapidou bem nosso estilo cinematográfico conforme as linhas propositivas do Cinema Novo, tendo em Paulo Emilio Sales Gomes seu principal expoente e canal. Assim, a posição abençoada do cineasta torna-se mais necessária e difundida na medida em que o cinema precisa, conforme a crítica engajado-politizada, se posicionar diante de uma conjuntura sócio-política. O artista do cinema está imbuído desta responsabilidade e deve respeitar este sacrossanto destino; afinal ele participa da engrenagem artística eclesiástica, tendo a político-divina função de sacramentar os espectadores.

É muito comum que os filmes brasileiros, seguindo esta lógica, sejam fortemente “politizados”, ainda que seja uma politização rasteira e inculta. Nosso cinema se formou, contemporaneamente, com este viés, originado através desta leitura crítica retrógrada e cansada do Cinema Novo, além de toda a influência marcada e importante do documentário social e revelador (do clássico Humberto Mauro e seus filmes educativos do INCE a Eduardo Coutinho e seu moderno Cabra Marcado Para Morrer). Nosso cinema se tornou social e político quase que por excelência, e obrigação. É eclesiástico.

Estas características ficam mais evidentes em momentos de crise política, como esta que atravessamos agora. Neste momento o grande político-messias-cinematográfico se empodera e aparece para expiar todos os pecados do mundo. Ele aparece e é aplaudido e ostentado quando se diz politizado e a favor desta ou daquela orientação política (e pior, rechaça quem não se posiciona). O cineasta se revela militante, ideologizado, hiperpolitizado, que sabe tudo dos rumos que o país e o povo deve tomar. Cineastas assim caem no jogo fácil que polariza o pais entre o sim e o não no Senado, entre ir ao MASP ou à FIESP; revela-se o que se espera do cineasta-messias-politizado, sua posição moral diante de uma situação extremamente complexa. Um “Fora Temer!” bem falado e entonado torna as pessoas, magicamente, politizadas e intelectualizadas.

A meu ver o cineasta que se posiciona facilmente com relação a nossa conjuntura política presta um desserviço ao fazer artístico. O cineasta deveria ser o primeiro a duvidar de qualquer posição política, qualquer posição moral com relação a assuntos políticos. É muito estranho que um artista faça juízo de valor sobre tais acontecimentos; somos bárbaros, fomos expulsos da República por Platão; não nos pertence judiciar sobre questões morais e políticas; somos cães e bridados com uma feliz e oportuna semelhança etimológica: o radical kino que aproxima o cineasta do cínico, nós dos cães.




Diante disto proponho nos desvencilhar desta noção hiperpolitizada, e acrítica, do cinema e redescrever, desconstruir (no sentido de construir novamente, com outro olhar) os ideais cinemanovistas, em especial os de Glauber Rocha, já que é em volta dele que se gravitaciona as teses político-sociais posteriores e fundadoras do nosso cinema contemporâneo. Ler Glauber de novo, assistir seus filmes de novo, criar novas diretrizes a partir de sua extensa e importante obra. Notar que o próprio desenvolvimento cinematográfico dele já indica um afastamento dos conceitos fundamentalmente político-sociais que caracterizou fortemente seus primeiros filmes e escritos. Entender melhor a relação complexa e dialética que existiu entre sua obra e a dos “marginais”, a relação retro-alimentar que existiu entre eles. Aprofundar e entender este desenvolvimento cinematográfico que faz Idade da Terra ser absolutamente diferente de Deus e o Diabo na Terra do Sol – diferença especialmente no que diz respeito ao militantismo político-social, e a importância do papel do cineasta para o país. Rever Rogério Sganzerla e encontrar nele os motivos que o motivou a fazer “filmes de cinema”, e fugir de uma fácil função teleológica prenunciada pelos cinemanovistas inicialmente. Desenterrar de vez Jairo Ferreira, Candeias, José Mojica...

Acho importante que este movimento de redescrição e desconstrução tenha ao norte, não as bandeiras políticas, as causas e o militantismo barato, mas a própria função do cineasta, o próprio motivo de sua existência no mundo. O cineasta deve mesmo ter função especifica? Acredito que nós devemos ser os primeiros a contestar nossa suposta função, nosso trabalho; o cineasta deve ser o sabotador-de-si-mesmo, antes de mais nada. Pois é preciso pensar ainda mais naquilo que Tonacci defende: o cineasta é o bicho que coloca imagens no mundo, e então cria mundos; há já de início, um problema ético fundamental a ser enfrentado. Como podemos colocar, simplesmente, imagens no mundo, criar narrativas, sem ser críticos de nos mesmos?

Será que é salutar para nosso trabalho defender este ou aquele governo? Este ou aquele modelo político? Será que é importante mesmo, nós como cineastas, fazermos protestos em Cannes, Berlin ou seja lá onde for? Se, como cidadãos, já fica complicado defender uma bandeira facilmente, militando causas às pressas, sem pensar, sem entender a complexidade das situações, para um cineasta isto me soa como um absurdo e um desserviço. Só vejo desserviço e adolescentismo tardio hiperpolitizar tudo, ainda mais o trabalho artístico. Nem tudo é política é um conceito básico e essencial para a modernidade. E o cinema já nasceu no meio disso. Agora até filme pornô precisa ser politizado, vide o que disse o produtor de Brasileirinhas do seu mais novo filme, Operação Leva Jato. É triste!

Proponho então o cinema franciscano e redescritivo, radicalmente desfiliado e discursivamente oxigenado. Que tal? Que tal discutirmos os rumos do nosso cinema relendo e redescrevedo nossos clássicos?


Lenon Oliveira Gonçalves

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