Time takes everybody out; time's undefeated.
(Umas notas meio desconexas sobre o filme):
1. A Hollywood de hoje se presta a contar as histórias de ontem. Nada de errado até aí — nada fora do que Hollywood já fez em sua história. Os ingênuos hão de afirmar que isso é traço de decadência e de que a originalidade foi a primeira a sair correndo dos filmes indo esconder-se nas séries de televisão (os culpados e motivos usuais foram providenciados). Os enfastiados — que são ingênuos à sua maneira — afirmam que tudo que havia para ser feito já foi feito e já não vale a pena contar as histórias que contamos. Tristes esses, que julgam um filme, um romance, etc, ser “somente história”. Antes fosse! E, pergunto, qual seria o problema? Ah! mas não basta “somente a história” para estes críticos tão exigentes, esses sentinelas do gosto, esses, que se julgam iluminados, “tocados pela musa”, esses, que nem falsos profetas podem ser (pois aí há a necessidade de um mínimo de talento para capturar e manter a atenção que se recebe), mas apenas indigentes do gosto, tocados não pela musa, mas pela dor de estômago. Nesse meio se pede o “conceito”, o “dispositivo”, o motivo interior da cena que se dane, há de haver sempre um “esquema”, ora como trapaça, ora como receita de bolo, ou como o procedimento de um DJ de festa (caso de um David O. Russell: não mostra nada, não vê nada, apenas toma emprestado samples de vários filmes, um plano de Scorsese aqui, outro de Demme ali, ou de Lumet acolá).
2. Eu, que sou um cara muito simples, já me deixo feliz ao ver que há uma história em primeiro lugar. Porque a história já entende se fazer parte do mundo, e não do éter flutuante de pó de pirlimpimpim do pós-tudo do ano de nosso senhor dois mil e dezesseis. Tenho pra mim que, quando bem feita, isso é, quando se propõe a ir além do roteiro, na história que se narra há inscrito o modo de narrar. Separar o argumento narrado da forma que ele é narrado me parece tão estranho quanto separar a arte do entretenimento. Levada a cabo, seria como separar as moléculas de oxigênio das de hidrogênio: pode ser feito, mas nesse caso não se teria mais a água, e sim apenas sede. A relação entre essas coisas não é uma de oposição, mas uma de adequação e conciliação. Adequação entre história e modo de narrar e conciliação entre arte e entretenimento. Caso contrário, tem-se somente disparates, como a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas e tipo de cinema aberrante que eles costumam defender (não vale citar tantos nomes, mas basta dizer que Apocalypse now ter sido preterido em lugar de Kramer vs. Kramer já é boa indicação de como a academia opera, e me parece ter havido aí um ponto de transição — sobretudo porque o filme premiado anteriormente fora O franco atirador.). Menciono tudo isso porque Creed me parece um filme de conciliação. Sobretudo entre o passado glorioso — porque é sempre lembrado assim — e um presente que ainda não veio a termo, que se dá como hesitante e pusilâneme, o momento de inspiração antes do atleta iniciar o jogo, ou a música que se forma com os sons dos músicos que afinam seus instrumentos antes de os silenciar e esperar o sinal do maestro. Conciliar Johnson e Creed é operação igual a conciliar a Hollywood de hoje com a de ontem, o novo com o velho. Não se perder em vanguardismo utópico estrábico, nem em reacionarismo míope. Mas encontrar uma hábil medida entre as coisas, um ponto melhor de observação. Adonis quer ser Johnson, mas sabe que também é Creed. Só consegue sair de seu estado de confusão mental quando entende que ser Creed não anula ser Johnson. Não por acaso, seu apelido no ringue é “Hollywood”. Não por acaso tem seus piores momentos de crise e dúvida em prisões (primeiro no reformatório, depois numa delegacia — justamente por ter agredido um músico que o comparou de forma derrisória ao pai). Delfos, afinal, se tornou um lugar pequeno demais para Apolo e Adonis. É necessário sair de Los Angeles, voltar ao velho bairro, à velha academia, treinar caçando galinhas (que poderia ter sido uma cena de antologia, se não estivesse esmagada dentro de uma montagem com outros momentos do treino). Porque, no final, tanto Adonis quanto Rocky, e os lutadores contra quem combatem, são deslocados, do melancólico Apolo até o robô soviético Ivan Drago, passando pelo boxeador inglês que luta para escapar da reputação de criminoso. Certas coisas só se resolvem no ringue, à luz do combate aberto.
3. O que eu gostei é que é um filme sem elegância. De que vale a elegância num ringue? Não há como se esconder num ringue. Mais vale a precisão. Precisão na leitura dos gestos, dos olhares, da postura. Precisão que o filme leva como procedimento no campo-contracampo. Cada pequena coisa que faz um ator é como um jab, uma finta, um gancho. O contracampo é uma resposta ao golpe do campo. Caso contrário não serve para nada. Ele une, como na cena no restaurante, com Adonis e a moça, que é uma cantora, e ela lhe fala sobre o aparelho de surdez, e a iminência de perder a audição (o filme é hábil em simetrias como essa dos dois personagens destinados a abandonar o que fazem de melhor devido à idade), ou separa, como no diálogo depois que Adonis descobre que Rocky escondia que tinha câncer. Nisso me parece um filme de muito mais fôlego do que algo como Os oito odiados. Não que Creed seja um filme clássico. Não é. Mas o olhar para o passado que o filme traz não me parece ser uma simples prestação de contas (como o Tarantino costuma fazer ultimamente.). Não chega a resolver as contradições mencionadas acima e acho que nem se propõe a tal. É um filme ora em linha reta, ora em círculos, como o Adonis luta no ringue. É um filme que se entende em ser entre o novo e o velho, portanto, entre Creed e Johnson. Para que no final seja possível subir as escadas do museu da Filadélfia e olhar para trás e encarar a própria vida, sem ressentimento.
(P.S.: Stallone está notável mesmo, de volta à Rocky. No momento em que o Adonis fala que salvou as instruções do treino na nuvem da internet, a reação de Rocky é olhar para as nuvens acima, na honestidade brusca e meio burra de seu personagem e é muito bem captada no filme. Não há nada de tolo na maneira em que ele faz isso, e nem no modo que o filme mostra esse gesto. Parafraseando o Mourlet, Stallone é o axioma do filme.)
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