terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Ainda embasbacado com Ossos.

Se sente a probreza em que vivem os personagens de maneira muito física, sem retórica. Nisso o Costa se parece muito com os escritores russos da grande época, mais para Dostoíevski do que para Tolstói, embora compartilhe da mesma genuína indignação, aquela que é alimentada por um senso ético em vez de uma demagogia mesquinha.

O labirinto no qual vivem os personagens é mais atroz porque também é o mesmo dia que parece se repetir incessantemente. Não há mudança concebível nessas vidas que não seja morrer. Mal há espaço para se viver, é necessário, a cada novo dia, negociar um mínimo de espaço. A cena do pai que pede comida para si e para seu filho recém nascido é muito forte. Menos do que ser tragado pela multidão, ele é eliminado do plano, anulado da existência. (Eu, ao menos, não consegui encontrá-lo no plano.) 

O que me impressiona também é a habilidade colocada nesse filme. Costa começou a fazer filmes no ponto aonde Bresson parou. Embora não se entenda de imediato qual é a relação exata entre os personagens (o que, do jeito em que está no filme, me parece como o único procedimento coerente com o que o filme é), sabe-se de imediato quem eles são. Eles carregam consigo, a cada plano, a evidência de seu ser. O filme desenrola as relações entre os personagens de forma lenta, toda sua fúria cozinhando a fogo lento. 

A base do filme é o trabalho, assombroso, com o som. Vendo o filme eu ia pensando "porra, é isso que é o som ao redor". Os berros contínuos que viajam pelo bairro inteiro de Fontainhas como o som de um planeta desconhecido. Se filmar cada lugar pede uma forma diferente (diferença bastante drástica entre o interior do apartamento da enfermeira, repleto de luz, e Fontainhas, aonde nem o sol parece chegar), cada lugar, também, emite sons diferentes. O apartamento da enfermeira parece ser isolado do mundo; em Fontainhas não se escapa do som dos outros moradores, como se estivéssemos num campo de batalha.

O punk chega, de verdade, no cinema com o Pedro Costa. 

"Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu voo)."

João Cabral de Melo Neto, O cão sem plumas, 1949-1950

(Roubei do Bérnard da Costa a associação entre Cabral de Melo Neto e o Pedro Costa, mas é difícil não associar a arte dos dois, tão semelhante entre si, sobretudo numa execução seca, desafeita a imprecisões e afetações e rebuscamentos.)

(Ossos é um daqueles raros filmes aonde se sai deles satisfeito, mesmo sem tê-los entendido. Acho que só Kiarostami faz filmes assim hoje.)

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