KINO ECCLESIAE
Evangelho da revelação
(autor desconhecido)
(1, 1–14)
Prólogo
1 No princípio era o Verbo Cinematográfico, e o Verbo estava com o Pai, pois do Pai partilhava Sua presença, sendo então o próprio Pai.
2 Tudo foi feito a partir dele e nada poderia ser feito sem ele.
3 Tudo que existe cinematograficamente provém do Verbo Cinematográfico, pois foi Dele provindo e materializado.
4 Nele residia a luz e a sombra, e harmoniosamente conviviam em Seu lar;
5 Nele o homem viria regozijar o esplendor da imagem em movimento;
6 a partir Dele a vida dos homens poderia ser iluminada.
7 Um homem estava por vir, para receber e testificar a boa nova;
8 para preconizar Sua vinda e estabelecer o contrato Divino entre os homens e a plenitude do Verbo;
9 para transformar a imagem do Verbo em Verdade;
10 para testemunhar o Verbo Cinematográfico.
11 Pelos desertos áridos pregará e anunciará a boa nova
12 “Com luz e sombra serás batizado” gritará.
13 “Arrependei-vos, pois Dele recebereis a plenitude e a graça” ouvirão de sua boca.
14 E o Verbo Cinematográfico se fez carne e habitou entre nós para toda a eternidade, ungido de graça, glória e Verdade.
Epístola de Lumière aos cineastas
(1, 1-4)
O Verbo se fez carne na Imagem
1 Tendo o Pai Kino-celestial, desde tempos remotos, falado à humanidade através de profetas mais ou menos capacitados a transmitir-nos a Sua plenitude e graça celestial,
2 nos últimos dias tem nos falado através de seu Filho eterno,
3 o Verbo Cinematográfico, feito imagem e semelhança dele, materializado em Imagem.
4 Ela que é resplendor do Mundo e eficácia de Suas ações, glorificada e ungida da Verdade do Mundo e dos espíritos que nele habitam.
(5, 14-18)
A Imagem é superior a tudo
14 Porquanto, irmãos portadores do cinematógrafo, sendo assim, fica exposto com clareza a competência da Imagem,
15 sua repugnância a qualquer impureza e Sua perfeição em consonância com o Mundo e Sua Verdade.
16 Regozijai da esperança a qual a boa nova nos brinda e, em êxtase, reunamos e louvemos a santidade da Imagem;
17 Ouvi o som do Espirito que, evocado, sustenta a imensidão do Mundo e prova Sua benevolência a toda humanidade.
18 Provai da luz e da sombra que é donde surge a Verdade.
(10, 5–14)
O sacrifício perfeito da Imagem
5 Em tempo novo, redivivo, buscai a eternidade através do que é Eterno, imutável, perene;
6 buscai a Verdade onde não haja espíritos malédicos que improvisam sua fé e testemunham do que não é do Pai Kino-celestial.
7 Atravessai desertos e procurai, mas tão-somente na Imagem tereis o sabor doce da Verdade;
8 não solucionai problemas a peso de espectadores de pouca fé, ou embebidos com a ganância da satisfação, pois da Imagem surge a felicidade e o prazer kino-divino.
9 Estejais ciente que o sacrifício em prata arremata os pecados deste povo de pouca fé e cria a nova aliança para a eternidade.
10 A consumação em prata da Imagem é mais perfeita do que qualquer sacrifício mediante truques e saberes puramente técnicos,
11 mediante escárnios prosaicos e audaciosamente narrativos.
12 Porquanto o Verbo só está verdadeiramente puro e santificado ao passo que a Imagem estiver plenamente sacrificada em prata;
13 sendo o sacrifício pleno e perfeito pois dele não se poderá mais nada fazer;
14 em sua luz e sombra reside o Eterno.
Epístola de Méliès aos cineastas
(1, 1–9)
O aparecimento do Verbo
1 Da altivez e benevolência do Pai Kino-celestial pôde-se, enfim, vislumbrar-se da imensidão e vastidão reconfortantes do Verbo;
2 pois Dele surgiu o Mundo e através Dele pode-se ver o Mundo.
3 Vê como glorioso é o Verbo que se fez Imagem e apareceu aos homens imbuído de sua espada de luz e sombra,
4 e certamente sedento de se mostrar aos homens.
5 Regozijai de Sua perfeição e que Sua aparição seja conforto e acalento aos homens que habitam nossa Terra.
6 Encontremos luz nas luzes e sombras que resplandecem da imensidão de Sua glória e graça.
7 Sejamos homens de espíritos aguçados para que não caiamos em tentação ao que nos foi enviado;
8 deixemos de lado nossos sentidos egocêntricos e reunamos para ver a glória e a graça que a Imagem foi destinada a mostrar-nos.
9 Estejamos fortes e saudáveis para que possamos sustentar a vastidão de sentimentos a qual nos é possível através do Verbo, tornado Imagem.
(6, 9–16)
A importância do Kino-sacerdócio
9 Porquanto é inegável que os fazeres Kino-sacerdotais estão para além dos costumes mundanos impuros;
10 Se faz absolutamente necessária a comunhão desses espíritos aguçados com a clara não-iniciação da kino-congregação espectadora.
11 Honremos a Imagem e seu sacrifício e continuemos a investir no seu sacrifício;
12 tornemos a Imagem digna de se mostrar e, absolutamente perfeita em Sua forma, demos capacidade para que ela se faça gloriosa entre os espectadores.
13 Mantemo-nos cientes de que o Verbo só se faz carne, em seu sacrifício eterno, através da celebração de seu ato sacrificial;
14 tomemos ciência de que o Kino-sacerdócio é, de maneira substancial, importante para a construção da fé;
15 importante para que haja a aliança perfeita entre quem está com o Verbo e quem está carente dele.
16 Pois não foi dito “Ide pelo mundo e mostrai o Verbo a toda criatura”?
PRIMEIRA PARTE
O Mistério e o Ministério
1
Estamos diante de dois problemas efetivamente substanciais para a história da Kino-Igreja Ocidental. Não é fácil estabelecer em que momento a tradição cinematográfica emplacou nesta ordem a qual por muito tempo esteve ligada e que, de modo ou outro, ainda resiste forte e implacável. Partiremos então dos problemas propostos e, escavando as Kino-Escrituras, vamos tentar dar cabo a uma proposição que vai se apresentar no decorrer da investigação. Vamos tratar então da história oficial da Kino-Igreja Ocidental, mais precisamente nos termos em que ela foi fundada e institucionalizada. Como foi possível – e necessário – que a Kino-Igreja aglutinasse aqueles dois problemas substanciais que num primeiro momento poderia até parecer-nos antípodas; eis o complexo problema que a Kino-Igreja decidiu enfrentar: o procedimento de uma kino-liturgia que abraçasse o Mistério, tornando-o passível de ministração: o “Ministério do Mistério”.
2
Nas passagens da Epístola de Lumière fica evidente o seu caráter novidadeiro em relação ao Verbo Cinematográfico. Como preconizado pelas Kino-Escrituras Lumière traz e testemunha a boa nova, incitando a todos que vissem, pois aquilo era a Sua carne. O que Lumière propõe, em seu êxtase diante do Verbo, é que os cineastas não se dispusessem a aceitar qualquer tipo de impureza praticada por pessoas de pouca fé – ou pessoas que não tinham em si o valor imanente e potencial da Imagem (Lm. 10, 6-7). Podemos afirmar com alguma certeza que Lumière fala aqui dos outros tantos objetos e mecanismos que existiam para se criar imagens em movimento. Estas pessoas praticavam o Kino-sacerdócio em nome do Verbo; tidos como profetas se utilizavam de máquinas, como o thaumatrópio, o cinetógrafo, o cinetoscópio, para realização de imagens fantasmagóricas com fins, em essência, espetaculosos. O que Lumière afirma é que o Kino-sacerdócio só é possível pela própria Imagem que é provinda do Verbo (Lm. 10, 12-13); o texto, subterraneamente, ataca o Kino-sacerdócio investido a qualquer pessoa ou imagem feita em consonância com a ideia de “mostrar”, com a ideia de pregação; ataca aquele que sacrifica imagens em nome da Imagem. Então o ato sacrificial em nome da Imagem não é digno do Verbo Cinematográfico, está absolutamente em desacordo com a proposta kino-divina.
Tem-se então que só o sacrifício da própria Imagem é digna do Verbo Cinematográfico (Lm. 10, 8-9). Apenas seu ato sacrificial primeiro e único está em comum acordo com os propósitos que o Pai Kino-celestial têm para a humanidade. Eis a necessidade de eliminar as impurezas da Imagem e aquelas que estão ligadas à Imagem. Eis o chamado para o Mistério que é a transubstanciação da Imagem em Mundo, em Verdade.
3
O Mistério kino-divino só tem lugar, segundo a Epístola de Lumière, na medida em que a transubstanciação da Imagem se faz operação do Mundo e é por ele operada. A potencialização deste ato transforma a Imagem em Mundo, pois opera nele e é operada por ele. É a partir deste ponto que Lumière pode falar em “sacrifício perfeito da Imagem”, e rechaçar qualquer atividade kino-sacerdotal que não seja a da própria Imagem. (Lm. 5, 16-18)
A boa nova de Lumière valida então a ideia de que o Cinema só pode existir através do ato sacrificial da Imagem, e que este ato tem potência necessária para transformar vidas. Qualquer tipo de conteúdo forjado ou formas estilísticas criadas pelo homem não podem ser mais importantes do que a transubstanciação da Imagem; o acontecimento cotidiano, em sua pureza de estado, não é senão a própria razão de se fazer Cinema, a razão pela qual a Imagem veio ao mundo.
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É claro que o Kino-sacerdócio também teve sua importância revelada nas Kino-Escrituras. A Epístola de Méliès propõe, além da santidade necessária do Kino-sacerdócio também, e mais importante para a gente, uma outra forma de ver a transubstanciação da Imagem – que é outra forma de transubstanciação. Primeiramente esclarecemos o que é mais facilmente apresentável: a importância da hierarquia. Méliès nos mostra como é impensável a ideia de deixar que a Imagem seja conduzida por ela mesma, e como Ela é insustentável por si só. Deixa claro que é preciso estar propenso a ouvir o mestre, se deixar carregar pelo kino-ministério. O Ministério – praticado pelo Kino-sacerdócio – é que transforma a Imagem e pode levar a boa nova à humanidade. Mais do que isto, é só, e somente só, no Ministério que a Imagem pode ser útil à humanidade; só assim ela nos apresenta em sua “vastidão” (Me. 6, 10). Aqui o ato sacrificial é designado aos kino-sacerdotes que cumprem o ministério e ajudam os espectadores a estarem mais próximos da Imagem; Ela não é Mundo, mas um dispositivo do(no) Mundo. É preciso celebrar a Imagem e estar disposto a renovar suas ações: eis o papel decisivo do Kino-Sacerdócio designado por Méliès (Me. 6, 11-12). (Lembrando que “celebração” advém do termo celeber que etimologicamente está ligado a repetição.)
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Outra chaga que a Epístola de Méliès abre é a da imagem enquanto espetáculo, ou passível de espetáculo. É inegável que Méliès fosse um entusiasta dos kino-sacerdotes que se utilizavam dos dispositivos à disposição para realizarem seus atos sacrificiais; pode-se ver com clareza nas colocações lexicais de sua Epístola: a utilização do verbo “aparecer” não parece ser ao acaso. E ainda vemos com frequência palavras como “vislumbrar” e “mostrar” (Me. 1, 3-4). Temos uma aproximação etimológica dessas palavras à origem de outra palavra tão cara a Méliès: Spectaculum, algo a ser visto por alguém. Ele nos instiga a degustar do poderio espetaculoso que a Imagem carrega. Sua predisposição parece ir totalmente de encontro com a proposta da Epístola de Lumière ao estimar à montagem de efeitos a posição de espinha dorsal do Cinema e qualificar os “efeitos” como parte indispensável do kino-ministério.
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Eis o problema posto à Kino-Igreja Ocidental: transformar em rito sacramental – Kino-Eucaristia – o que a priori parece ser impassível de ritualização, ou seja, o ato sacrificial da Imagem. E ainda transformar esta ritualização em ministério institucionalizado para pregação a fiéis espectadores.
A origem da Instituição
1
No que concerne à Instituição do Cinema é preciso que voltemos aos seus instantes mais remotos enquanto gênese de uma kino-congregação, ou espécie de kino-congregação. Precisamos levar em conta o estado dessas reuniões primitivas e como acontecia tais cerimônias cinematográficas. O primitivismo dessas manifestações se caracterizava a partir de uma noção mínima de realização cerimonial – ou pelo menos de uma realização cerimonial tão humilde que era impassível de qualquer tipo de institucionalização. Os nickelodeons ajudam na nossa investigação na medida em que eles criam uma comunidade kino-carismática completamente ao largo da jurisdição institucional que vai aparecer mais tarde. É provável que houvesse uma variante absurda de leitura e apropriação do Verbo Cinematográfico. O que podemos afirmar com alguma certeza é que estas apropriações provavelmente não escapavam muito dos ideais propostos acima; ou seja, sendo contemporâneos aos nossos escritores epistolares é possível que tais kino-sacerdotes primitivos tenham partilhado ideias de um ou outro.
Fato é que destas manifestações vão surgir dois fios principais que descambarão em duas vertentes importantíssimas para a história cinematográfica: os cineastas que faziam filmes para serem vistos em público (kino-sacerdotes) e os cineastas que provavelmente fizeram filmes sós, experimentos, estudos, e que não tinham o menor interesse em mostrá-los aos outros (kino-eremitas). Do segundo filão vamos ter a tradição kino-monástica da qual é interessante falar mais tarde; do primeiro filão teremos toda a tradição kino-eclesiástica.
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Notemos a premissa dos kino-sacerdotes: filmes para serem vistos em público. Daí já temos uma propensão aos escritos de Méliès, porém é preciso ir mais além nesta descrição nada aleatória e arbitrária. A Kino-Igreja só foi possível a partir da noção estratégica de sua importância para a kino-congregação; ou seja, apenas no momento em que ela conseguiu conduzir uma kino-liturgia foi possível o estabelecimento de bases fortes e vindouras para assegurar a institucionalização. Do grego tem-se que leitourgia designa “prestação pública/obra pública”, ou seja algo a que é preciso prestar contas; mas esta prestação de contas deve, necessariamente, atingir o que é próprio do povo (laos). Não coincidentemente a Kino-Igreja estabelece o pacto com o laos (povo/espectador) através de um officium, de uma obra que deve servir (kino-leitourgia). O aparecimento do officium sustenta a passagem de uma comunidade kino-carismática a uma organização kino-eclesiástica, que é por si só, hierárquica, dando ao kino-sacerdote o direito de realizar sua ação salvífica em nome da Imagem com intenção de “mostrar” o que é “mostrável”.
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As bases que sustentam este paradigma são encontradas na Epístola de Méliès, portanto o cunho ministerial da Kino-Igreja já estava posto e bem fundamentado. A ação salvífica da Imagem enquanto espetáculo se mostra eficaz nestes termos garantindo à transubstanciação um caráter de serventia ao povo/espectador (laos). Porém era preciso que uma organização de mecanismos fosse estimulada e praticada. A kino-liturgia só faz sentido no momento em que ela é formatada. Esta tarefa é encarregada ao irmão convertido que carregava consigo uma noção, muito bem-vinda à Kino-Igreja, de universalização. D.W. Griffith mecaniza o officium e sistematiza a kino-liturgia através de convenções, além de criar um formato bem específico que logo seria incorporado pela Kino-Igreja. O corpus griffithiano sustenta ainda mais a institucionalização bem construída que o movimento kino-eclesiástico precisava naquele momento e se alia àquela especificidade de universalização da Epístola de Méliès (Me. 6, 16). Não tardaria para que estúdios apadrinhassem e se convertessem ao Cinema griffithiano transformando-o, finalmente, em uma questão de Estado, Instituição. Eis a criação concisa e permanente do Ministério.
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Com seu rito bem estabelecido, a Kino-Igreja demostra força e poder político através de uma apropriação linguística: a kino-liturgia. O rito kino-sagrado tornou-se importante para que a instituição pudesse ter poder sobre seus espectadores (através de um officium) e pudesse, além disso, criar espectadores, que, ao que parece, seria o mais importante. Só precisamos investigar como a Kino-Igreja conseguiu resolver o problema posto no início do texto: a conciliação entre o Mistério e o Ministério.
O Ministério do Mistério
1
A ação salvífica da Imagem em Lumière constrói a arquitetura do mysterion kino-divino. Como dito, o sacrifício da Imagem é uno e inteiramente puro, tornando-se impassível de repetição, de celebração (Lm. 10, 13-14). Já o ministerium é a atividade que deve reiterar o sacrifício da Imagem através de atos sacrificiais exercidos pelo officium kino-sacerdotal (Me. 6, 13-14). Entre essas duas variantes temos um grande vazio e uma discrepância imensa. A Kino-Igreja precisaria então acolher este paradoxo e para determinar algum tipo de coerência nesta dualidade criou-se a ideia de uma oikonomia kino-divina; a ideia de gestão ministerial do mistério.
2
Esta junção através da economia kino-divina ao mesmo tempo une e separa os escritos de Lumière e Méliès. Agora temos que o mysterion não é mais somente a ação salvífica da Imagem por si só (opus operato), mas também a ação realizada pelos kino-sacerdotes em função da Imagem (opus operantis). A oikonomia se transforma no próprio mysterion e age através da operação do kino-sacerdote: tem-se então o sacramentum, a ação (officium) que torna sacra a Imagem através de dispositivos externos à ação salvífica Dela por si só. Então é possível falarmos em uma atividade sacramental ex opere operato que é a obra operada pelo simples ato da operação; não importa aqui a moralidade do kino-sacerdote mas a operação que ela efetua através de sua ação salvífica. O caráter subjetivo do autor da obra independe no processo de operação. Surge um caráter bem específico que é próprio da Kino-Igreja Ocidental e que mais tarde vai ser duramente criticado pelos neokino-reformistas e pelos kino-abades.
SEGUNDA PARTE
O nascimento da regula
1
Interessante notar como as práticas cinematográficas primitivas foram se esquadrinhando conforme arranjos pré-estabelecidos de alguma forma (como forma, molde). É possível que houvesse, e ainda haja, uma legião de cineastas que passam ao largo de institucionalização ou mesmo de regras concretas a serem seguidas; para o estudo estes cineastas não interessa; apesar de entendermos a importância cinematográfica que eles tiveram e ainda possam ter, fica evidente que eles acrescentam pouco à tradição kino-eclesiástica – para o bem ou para o mal. Vamos procurar entender como cineastas “errantes”, kino-eremitas, como anacoretas que buscavam sua kino-fé sós, foram apadrinhados por kino-abades e foram com o tempo se transformando em kino-cenobitas; ou seja, como o cunho eremítico desses cineastas passou, politicamente, a algo cenobítico, e que, portanto, necessitava de uma regula para poder existir. Como estas manifestações lidaram com a tradição kino-eclesiástica e, em especial, negando a kino-liturgia dela.
2
É preciso entender que os movimentos kino-cenobíticos que viriam tomar corpo não são constitutivos da tradição kino-eclesiástica num primeiro momento; sua principal crítica à Kino-Igreja reside em desarranjar a estrutura kino-litúrgica que estava sendo criada e já bem fundamentada, como vimos acima. As articulações da kino-liturgia muito incomodava os primeiros kino-abades, pois delas surgiam uma incessante necessidade de propagação, além daquela já citada característica propulsora que torna a ação eficaz ex opere operato, acima de qualquer pressuposta imoralidade do kino-sacerdote. E para rearranjar os pressupostos kino-litúrgicos, era preciso um mínimo de comunhão, de criar, minimamente, uma comunidade; o estabelecimento de uma confraria é tão mais eficaz na medida em que ela se organiza em uma regula; nasce então os primeiros preceitos regulatórios aos cineastas.
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Não é possível saber com exatidão quais foram as primeira regras que nasceram no movimento kino-cenobítico, mas podemos consultar livros a este respeito: o Codex kino-regularum e a Kino-regula magistri, por exemplo fazem parte de uma coleção específica de um cenóbio específico. A autoria do primeiro fica posta a um grupo de kino-abades dentre eles Louis Delluc, Abel Gance, Marcel L’Herbier, Germaine Dulac, Jean Epstein entre outros; ao segundo fica posta a autoria a Riccioto Canudo, que escreve em termos de valorização suprema da boa nova cinematográfica. Outras várias formas de regulamento foram criadas, as quais podemos versar mais adiante quando for necessário. O que nos importa, num primeiro momento é que a insurgência dessas novas práticas se dá na medida em que a sistematização que a Kino-Igreja faz através de seu ato sacramental desvia o curso sagrado a que foi destinada a vida cinematográfica. Não à toa a grande motivação destes primeiro kino-abades vai ser enxergar e pregar a conduta kino-divina através da própria Imagem; mas não só, é preciso também reconhecer o poder de transformação da Imagem, e como ela altera e transforma as sensações do kino-fiel. Cada qual à sua maneira os kino-abades vão tentando enxergar uma nova forma de realizar a espiritualidade da ação salvífica da Imagem.
Agora estamos bem distantes do grande problema que a Kino-Igreja enfrentava na criação de uma kino-liturgia, pois não se pensa mais em tornar o sacrifício da Imagem um rito celebrativo a multidões (spectaculum), mas em sustentar seu sacrifício através do que é substancialmente subjetivo ao kino-fiel e só pode ocorrer nele. “O kino-cenobita deve imprimir [imprimere] o Verbo em consonância com suas inspirações; deve experimentar o máximo possível da qualidade alomórfica da Imagem (...)” (Codex kino-regularum). Deste trecho temos que era essencial a este grupo cenobítico que a transformação do ato sacrificial da Imagem fosse estimulada; variantes técnicas eram louvadas em função de um suposto poder estilístico puro que a ação salvífica da Imagem carregava. Esta característica, pressupostamente, causa uma transformação no kino-cenobita através de impressões que são mais efetivas na medida em que aquelas variantes técnicas tornam-se peça central da ação. Outra recomendação (“É de suma importância que haja respeito integral à duração e ao ritmo(...)” (Codex kino-regularum)) expressa a necessidade e a importância de uma kino-horologium vitae que prevê um cuidado específico com a duração rítmica do rito fílmico.
Exemplos de regras estipuladas por kino-abades são bem numerosas e, como dito, cada qual se alia a uma especificidade com relação ao ato sacrificial da Imagem. “Fica exposto que é fundamental que haja a experimentação emocional oriunda do contato direto com o sentimento gerador da obra (...) com o sentimento oriundo do próprio ato salvífico que emana da luz kino-deífica (...)” (Regula caligaris); neste excerto a regula dos kino-abades alemães propõe contato sentimental através do exprimere. Ou ainda as recomendações da regula vertoviana “Pela Imagem vê-se o que o olho não vê, como microscópio e telescópio do tempo, como o negativo do tempo, como a possibilidade de ver sem fronteiras ou distâncias (...)” (Kino-oculum regularum) em que se busca um afastamento aos simbolismos vertiginosos do sacrifício imagético.
Outros tantos foram os kino-abades a criarem suas regras e forçarem uma nova modalidade de praticar sua kino-fé, sempre se distanciando do que a Kino-Igreja vinha construindo nos termos de uma kino-liturgia eclesiástica. O que nos interessa é entender como foi essencial a criação de normas para a passagem política de um grupo que era substancialmente eremítico para uma comunidade cenobíticas que praticavam sua kino-fé através de um rito que não era mais aquele próprio do celeber, mas sim do instante puramente subjetivo do cineasta, ou seja, da ação de voltar-se a si enquanto testemunha do sacrifício imagético (kino-meditare).
A kino vitae
1
A experiência subjetiva proposta pelas regras cenobíticas previam este caráter meditativo da ação fílmica. Antes era necessário criar condições específicas para formulação e regulação da atividade do kino-cenobita para depois se chegar a um estado puro de realização, que consistia na própria forma-de-vida fílmica antes do ser e agir; tem-se então que as regras não são aplicadas ao ato fílmico mas, invertendo a lógica, o ato fílmico se aplica às regras gerando aquele deslocamento em que a ação fílmica passa do plano prático para o da forma-de-vida, estabelecendo uma forma-de-vida fílmica: kino vitae.
A particularidade da kino vitae é justamente o ato meditativo que ela propõe. O kino-cenobita se ajusta ao seu officium, não mais como um representante da ação salvífica da imagem, mas como a própria ação; seu officium é servir a si mesmo e sua prática. É importante notar que esta condição de kino-meditare se desfaz no ato da ação fílmica, pois dela emana um grito, um discurso. Assim, esta condição se revela em outra particularidade: a kino-oratio, pois deste officium específico surge a necessidade de falar, de pronunciar. Esta premissa é que vai deslanchar para a ideia de poder viver em grupo, em comunhão; só a partir da kino-oratio é possível viver em comunidade, ter-se uma “vida comum” , e então praticar o que é próprio do kino-cenóbio e que sem isto não faria sentido a existência dele: a kino vitae.
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É certo então que o kino-monasticismo foi uma tentativa excedente de praticar uma kino vitae que estivesse quase que completamente desligada da kino-liturgia eclesiástica. Porém, é certo também que esta tentativa assumiu e ainda vem assumindo uma forma bem específica de kino-liturgia, ainda que afastada daquela tradicional. A kino-liturgia monástica com certeza abriu uma brecha importante na história do Cinema e conduziu a experiência humana a outros níveis, porém também viu, tardiamente, um radical deslocamento de sua premissa vital, a kino vitae, para um kino-habitus. O hábito que caracterizava, primordialmente, o modo de agir, o ser (estritamente ligado à kino vitae) passou a designar a roupagem, a vestimenta fílmica. Isto com certeza esmoreceu a prática kino-monástica, ainda que os neokino-reformistas a tenham requisitado para atacar a kino-liturgia eclesiástica.
TERCEIRA PARTE
Reforma kino-litúrgica
1
A kino-liturgia monástica serviu como base importante para uma revolução importante dentro das premissas cinematográficas. Os neokino-reformistas emplacaram uma nova forma de lidar com o Verbo Cinematográfico e construíram uma tendência completamente inovadora e crítica com relação à kino-liturgia eclesiástica. Em princípio dois nomes foram de substancial importância para a construção kino-litúrgica desses novos cineastas: André Bazin e Henri Langlois. Dois kino-abades que já vinham de uma tradição kino-monástica, o segundo com características mais administrativas e o primeiro com ideais mais reformadores. Langlois foi quem democratizou a kino-liturgia eclesiástica tornando-a mais acessível ao público. Montou um sistema de exibição eficaz que facilitava o acesso à kino-liturgia de Hollywood, além de outras tantas e, através de seu trabalho de reconstrução e conservação, conseguiu também o cargo de kino-abade principal na abadia do cinema francês. Langlois organizou e democratizou o Verbo através de uma prática que já se via em pequena escala nos kino-monastérios franceses nos tempos de Louis Delluc, o kino-clubismo; o kino-abade investiu na recuperação da tradição e na difusão de tradições monásticas menos conhecidas. Este trabalho de recuperação foi importante para o trabalho do outro kino-abade, Bazin. Investindo em uma crítica ao Verbo Cinematográfico e dando outros parâmetros para seu uso, Bazin abriu uma brecha para a construção de uma visão rejuvenescida da kino-liturgia.
A crítica de bazin foi sustentada pelos escritos de Lumière num primeiro momento. Com uma interpretação muito particular da epístola, ele formulou sua ideia de como o Verbo deveria ser tratado, negou a condição de spectaculum e deu mais importância ao caráter de evidência e Verdade do ato sacrificial da Imagem.
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O dispositivo de Bazin é fundamentar o poder da ação salvífica da Imagem como um ato essencialmente objetivo e, por isso mesmo, verdadeiro. O sacrifício da Imagem por si só já é suficiente para acarretar uma transformação no espectador; ela carrega consigo o mundo enquanto mundo mesmo, reforçando sua característica de res, aquilo que é matéria e existe enquanto coisa no mundo. Isto aproxima a ação salvífica da Imagem ao espectador, colocando em xeque a parte ministerial da Instituição Cinematográfica. Não se trata de uma renúncia completa à kino-liturgia eclesiástica, mas de uma indisposição burocrática a seu modus operandi; a salvação não está mais coligada a um ato específico, àquilo que se faz, mas àquilo que se crê. Crer no sacrifício da Imagem é ter fé no seu ato objetivo (realis), sustentando um desejo humano de imortalidade, de ser perene [uma ontologia].
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As ideias de Bazin e Langlois alicerçaram o trabalho de outros tantos cineastas que viriam mais tarde. Com a kino-liturgia eclesiástica democratizada e com a amplitude que foi dada à kino-fé, foi possível o aparecimento de herdeiros que em maior ou menor grau se utilizaram desta base para revolucionar a leitura do Verbo. Cineastas mais radicais, como Jean-Luc Godard, ou mais amenos – mas não menos críticos –, como François Truffaut trabalharam em função de uma nova ideia em Cinema, de um novo caminho para se estabelecer o contrato deífico definitivo. Enfrentaram um dilema complicado de ser resolvido, que em muito se assemelha ao problema fundador da Kino-Igreja: conciliar a ação salvífica perfeita da Imagem ao kino-sacerdócio inevitável do cineasta.
Influenciados por Bazin, foi possível reler Lumière e encontrar o poder de realis na obra cinematográfica, porém sem se distanciar do poder incondicional do kino-sacerdote, relendo Méliès; foi possível encontrar no poder salvífico da Imagem um motivo divino para o kino-sacerdócio, que se transforma em kino-sacerdócio régio. A gênese kino-monástica influenciou no ataque ao rito sacramental ex opere operato da tradição kino-eclesiástica e através desta crítica, criou-se uma noção de kino-sacerdócio não como a ministração de um rito, mas como a ministração da própria vida, do próprio Mundo.
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(A Kino-Reforma tem muito mais elementos a serem notados, porém o que foi dito já alcança um compromisso com elementos fundadores e essenciais do movimento. Claro que houve diferentes visões e tratos com o Verbo Cinematográfico, entretanto o que nos é importante para o estudo, já está exposto e discorrido. Naturalmente, para nós, todas estas outras manifestações derivam, de modo ou outro, da kino-liturgia criada pela Kino-Reforma. Este movimento abriu um leque tão imenso de variáveis cinematográficas, que ficaria impossível discorrer com rigor sobre todas elas em um único trabalho.
P.S: Vídeo-artes, instalações, propagandas, são todas manifestações ateias!)
Conto de Lenon Oliveira Gonçalves