DA IMAGEM À IDÉIA
por Alexandre Astruc
Ao invés de me entregar a esse exercício um tanto conveniente, e que muitos outros antes de mim e melhor do que eu, com maior ou menor felicidade, abordaram, que é o de lembrar as relações que a literatura e o cinema mantêm um com o outro e detalhar as adaptações possíveis deste para e por aquele, prefiro começar por duas citações de autores que tanto um como o outro tiveram o que lastimar ou louvar ao ver post mortem suas obras levadas às telas.
A primeira é de Balzac - mas eu me referi tantas vezes a ela, a ponto de torná-la minha, que tenho alguns escrúpulos de utilizá-la diante de vocês - e ela se encontra no admirável ensaio, única homenagem de um escritor a outro, sobre A Cartuxa de Parma de Stendhal. Existem, diz Balzac, três estilos: o primeiro é o estilo da imagem que é o estilo do sr. de Chateaubriand, o segundo o estilo da idéia que tornou ilustre o sr. Stendhal. E ele acrescenta: mas há um terceiro estilo, aquele em que a imagem remete à idéia, o meu.
A segunda é de Marcel Proust, e está no final de O Tempo Redescoberto, de modo que ela pode aparecer como uma conclusão, o clímax final da obra gigantesca que levou a cabo e a qual terminou apenas para ingressar na morte e na imortalidade. “A beleza das imagens está localizada na parte de trás das coisas; a das idéias, na parte da frente. De modo que a primeira cessa de nos maravilhar quando as apagamos, da mesma forma que só compreendemos as segundas quando as ultrapassamos.”
De minha parte, acho essa frase tão bela, tão profunda, ela vai tão longe no conhecimento do coração humano e no da existência de uma arte, que chego a sentir uma espécie de vergonha em usá-la aqui apenas como epígrafe a algumas reflexões sobre o cinema.
Mas, primeiramente, o que é a idéia no cinema?
É a mise en scène, ou seja, o olhar que o realizador, por intermédio da câmera - olhar ativo, olhar incisivo, como um julgamento, que se quer ou se almeja o do julgamento final -, pode portar e porta necessariamente não somente sobre a narrativa que se pôs a contar - em imagens, portanto - mas também sobre os cenários, os figurinos, os acessórios que tem à sua disposição, sem esquecer, sobretudo, antes de todas as coisas, dos seus intérpretes, os atores e as atrizes cujos movimentos do rosto e os gestos do corpo sua câmera, como um bisturi que perscruta incansavelmente, pode não somente atingir ou acreditar que atingiu a verdade suprema deles a qual ela persegue, mas que agora pode, por ter se transformado num olhar moral, como a beleza das coisas de que Proust fala, ultrapassá-la.
Uma idéia, portanto, um olhar. Um filme não é apenas uma história que nos contam com mais ou menos talento, mais ou menos recursos: é uma idéia em andamento, em movimento, e ouso dizer, parafraseando Hegel, olhando sob as janelas de sua universidade de Jena a passagem das tropas de Napoleão: “uma idéia a cavalo”... A primeira de todas essas idéias é aquela que vos vêm ao espírito, a partir do momento em que se abre um livro que você se propôs ou que lhe propuseram levar às telas, e é a seguinte: o que o autor quis dizer ao escrever este texto?
Por que ele escreveu? E, se por modéstia o autor se recusou a responder com antecedência: qual o seu significado oculto? Não se escreve, não se filma inocentemente.
Aqueles que dizem o contrário são mentirosos, e mentem principalmente quando dizem “eu apenas quis dizer a verdade, mostrá-la”, pois a arte é primeiramente uma mentira e sua verdade não é o contrário de uma mentira, mas a própria impossibilidade da mentira e a sua superação. É como a solidão na arte: ela não existe. Não se escreve, não se filma para si, para apenas falar de si; um filme é escrito para os outros. A arte parte desse princípio e o olhar do criador é o olhar do outro, daquele a quem a obra é destinada. Não existe filme, assim como não existe texto, de fato íntimo. Como diz Blanchot, a palavra “só”, por ser uma palavra, e que faz parte do logos, por ser aquilo que nos liga a nós mesmos, a Deus, aos outros, é tão universal como a palavra pão.
Vou tentar comprovar o que acabei de dizer tomando o exemplo de um filme que fiz, e que é além disso o primeiro que quis fazer. Trata-se de O Poço e o Pêndulo de Edgar Poe. Em 45 escrevi uma primeira versão, em que totalmente estarrecido pela beleza aterradora e que visa o sublime do estilo de Poe, eu falhei - abençoado seja Deus por ter feito com que eu perdesse esse primeiro script - por ter passado ao largo do essencial. Quando vinte anos depois, sob uma encomenda da televisão - Albert Olivier era então diretor da televisão pública -, retomei meu trabalho do zero, eu finalmente me coloquei as perguntas certas, cuja primeira seria por que Baudelaire concebeu tal paixão por esse autor desconhecido a ponto de aprender a língua inglesa para traduzi-lo e torná-lo seu. A primeira explicação que vem à mente é naturalmente quando Baudelaire fala dessa “jaula dourada” que foi o universo yankee para Poe, irmão como ele em maldição, em paraíso artificial, em profetismo. Isso seria suficiente? Estaríamos esquecendo O Corvo e, sobretudo, A Filosofia da Composição, onde vemos que Poe, espírito atormentado pela lógica, naturalmente levado à abstração, explica ou pretende explicar como ele concebeu metodicamente esse poema. Eis o que toca o Baudelaire de Meu Coração Desnudado, em que a exibição das misérias esconde, como em toda confissão verdadeira, um espírito de uma dialética superior, de uma inteligência transcendente, de uma lógica capaz de tudo dizer sob a condição de não confundir, como é de hábito na França, lógica e bom senso, rigor e falsa evidência. A verdade, como o Deus dos jansenistas, é uma verdade escondida que só pode ser abordada por espíritos corajosos, lentamente desvelada como o véu do templo segundo os Evangelhos: véu disposto pelos justos e o coletivo de mortais, rasgado na sexta-feira santa às três horas da tarde, enquanto o céu ficou escuro como tinta, pela ponta da espada do centurião... Poe e Baudelaire, como todos os grandes místicos, são espíritos levados à abstração e cabeças profundamente religiosas. Mas voltemos à lógica, a esse poder de raciocínio que liga Baudelaire a Poe e Poe a Baudelaire.
Sabemos (fiquei sabendo por um pequeno ensaio de Denis Marion) que Poe, enquanto Dickens publicava na Inglaterra Barnaby Rudge em série, havia deduzido, sem naturalmente conhecê-los, os primeiros capítulos já publicados, o desenrolar dos outros e o fim do romance.
Mas voltemos ao Poço e o Pêndulo. De que se trata: da narrativa de um pesadelo? Prossigamos. É da primeira à última linha um raciocínio ou uma seqüência de raciocínios de uma lógica perturbada, que em um estilo de uma suntuosidade soberana remete aos mais admiráveis poemas baudelairianos: “E, mortalha, sem fim, que do Oriente nos vem, Repara, meu Amor, na Noite aparecendo.” Ligados uns aos outros, passando de uns aos outros, Poço, Pêndulo, um prato cheio de uma refeição gordurosa, ratos, correntes, isto quer dizer os objetos e seres mais concretos, mais reais, as súplicas, dispostas aqui numa ordem rigorosa para servir de limite a um pensamento que nunca cessa de funcionar.
Um exemplo: em certo momento diz o prisioneiro, admirável Maurice Ronet: “reluziu em meu espírito algo que eu não saberia melhor definir senão como a metade informe daquela idéia de libertação, a que já aludi.” À luz desta tripla chama: prosa sublime em que não se sabe qual o aporte de Baudelaire e qual o de Poe, condução forçada do pensamento, e o objeto concreto através dos quais ele passa, eu tinha o essencial de O Poço e o Pêndulo na palma da mão: isto é, a idéia que o presidia e as imagens pelas quais ele passava. O resto era apenas trabalho, mas desse trabalho a execução também seria essencial, pois, como disse Napoleão, com a idéia em andamento, tudo está na execução.
Sabe-se, por exemplo - abro aqui um parêntese -, que na batalha de Wagram, vencida no primeiro dia pelos austríacos, Napoleão se refugia na ilha de Lobau de onde, por uma saída, ele faz com que sejam construídas três, três pontes: “por que três, Senhor?”, pergunta-lhe um braço direito... “Uma para as tropas que vão e outra para as tropas que voltam, ora!” “Mas e a terceira?” “Para os mensageiros.”
É assim com o cinema como com a arte militar. Eu tinha tudo planejado, exceto que a maioria das ações ocorriam na escuridão total. “Como filmar as trevas?”, perguntava meu operador Nicolas Hayer. Juntos encontramos a resposta colocando a luz dos projetores em resistência: as trevas absolutas nas quais Ronet encontrava-se absorto apenas se iluminariam quando ele se aproximasse da parede seja para tateá-la, seja para medir a extensão de sua cela.
Mas já falei suficientemente de mim. Permitam-me convocar para o resgate Jean Renoir. Ele dormia tranqüilamente em casa, avenida Frochot, antes da guerra, quando no meio da noite um telefonema desesperado o acorda. Era Roland Tual, um amigo, então produtor: Jean, só você pode me salvar. Eu tenho em minhas mãos um contrato com a rede de ferrovias do Estado (a da estação de trem Saint Lazare) para a realização de Le train sans yeux que Duvivier deveria escrever e dirigir. Ele acaba de desistir. Você tem alguma idéia?
Ligue-me daqui a dez minutos. Renoir vai à sua biblioteca, tira A Besta Humana de Zola, folheia-o, e chega à famosa cena onde sobre um aterro ferroviário Lantier (Gabin) estrangulará Blanchette Brunoy... O rugido do trem cercado pela fumaça detém-no no seu gesto. Em um piscar de olhos Renoir viu a cena, a imagem e a idéia que circula: o sangue maldito dos Rougon-Macquart. Foi a partir desta única imagem, disse-me, que decidi realizar A Besta Humana, salvando assim os negócios do amigo Tual!
Aconteceu-me a mesma coisa, em certo sentido, mas com Flaubert, quando, porque precisavam de um diretor, e que La proie pour l’ombre, ainda não lançado comercialmente, havia agradado meu futuro produtor, propuseram-me uma adaptação moderna de L’éducation sentimentale. Eu não havia, faço aqui uma confissão, relido Flaubert, pois considerava o trabalho de Nimier como um roteiro original. Eu caí imediatamente em uma cena que me chamou a atenção: a que Madame Dambreuse, por quem Frédéric Moreau está loucamente apaixonado e que ele acredita que o ama também, afasta-se violentamente dos braços deste último com um “não”, que lhe coloca as tripas para fora no momento em que crê que ela consentiria em partir.
Por quê?
Porque se ela quer ter com Frédéric Moreau um pedaço de céu azul, fisicamente, animalmente, é o infeliz do seu marido que ela carrega consigo. Todo o filme foi reescrito por Nimier e filmado por mim para desenvolver essa idéia. Acrescento que, quando revi esta Educação Sentimental, o que me impressionou foi a lucidez extraordinária dos diálogos de Nimier, como se ele acrescentasse ao meu olhar um outro olhar que o multiplicasse...
Em La proie pour l’ombre esse outro olhar, esse olhar que assume o posto de mise en scène suprema, é a música de Bach: a famosa cantata 51 cantada pela sublime Teresa Stich-Randall, a qual me foi trazida, me foi dada como um presente dos céus... Eu havia imaginado uma cena clássica a três, mas movido por um pressentimento, eu a havia situado em um auditório. Assim que Christian Marquand põe essa cantata para tocar, da qual acabou de gravar o início, tudo se inclina a um universo superior; tudo, não estou de brincadeira, é animado por um sopro à la Murnau, à la Mizoguchi, porque os atores, esquecendo da cena que estavam a interpretar, começaram a andar no ritmo desta música sublime, e quando Annie Girardot, de costas e com o rosto na direção da parede, vira-se na direção de Marquand, de quem no momento ela aceita o amor, se ela tem lágrimas nos olhos e o espectador também, pelo menos é o que espero, é por causa desta música, que ela associa instintivamente (pois tudo na mise en scène baseia-se na fotografia e na análise lógica do que no homem é instinto) ao amor que, durante algum tempo pelo menos, ela se dá, e posso dizer sem exagerar que a mise en scène, a idéia, portanto, que domina La proie pour l’ombre, é menos a mim que a Bach que a devo...
Também é necessário entender que no cinema o que preside é um certo olhar, mas há também os pontos de vista... num certo cinema, pelo menos, como observou com justeza Jean Collet?
Existem cineastas como Visconti, Ophüls, Hawks, Lang e é claro Mizoguchi e Murnau, esses que pela câmera e pela mise en scène dizem o que têm em mente, e outros como Rossellini, e mesmo Fellini, que têm seus pequenos mundos secretos em si, antes mesmo e mesmo sem talvez terem confiado à câmera cinematográfica de levá-los à tela. Rossellini, por exemplo, realizando seu admirável A Tomada do Poder por Luis XIV, é tão pouco interessado pela mise en scène que confia freqüentemente aos cuidados de seu filho a direção de tal ou tal cena, contentando-se após a rodagem de perguntar, como uma repreensão: Por que você colocou a câmera no teto? Você não pode dar ao espectador a liberdade de decidir por si mesmo o sentido que ele pretende dar à cena que vê... Aquela família, a primeira, à qual por temperamento eu pertenço, não é menos, tanto quanto a outra, a de um cinema de autor, que se expressa diferentemente.
Alguém poderia da mesma forma, mas eu extrapolo, opor uma literatura de movimento, de imaginação, e até mesmo da desmesura, da qual Balzac seria o protótipo, sem que nunca, no fragor da trama, o autor abandone seu direito de julgar os personagens, e que eu chamaria, pois seus partidários são perseguidos pela próxima página, “a literatura dos profissionais”, a uma literatura ao mesmo tempo mais desenvolta, mais preocupada consigo que com os seus personagens, que seria a de Stendhal ou de Benjamin Constant. Condenados às plumas ou maquinista de travelling: é isso, é tudo uma coisa só. Assim, podemos compreender melhor a admirável reflexão de Proust que citei no início desta palestra. O autor que é ao mesmo tempo o mais intelectual, daí as suas constantes digressões, e o mais sensual de toda a literatura francesa, a ponto de criar ele mesmo por um jogo de espelhos de uma extravagante complexidade sua própria dor de não ser amado, tão abundante em imagens sublimes de modo que quando o narrador atravessa Saint-Loup rumo a essa Rachel por quem se apaixonou, e que sabe de onde ela está vindo, detendo-se por vinte páginas que duram sobre uma admirável descrição de uma pereira florescente, tem sempre em mente, diante dele, à sua frente, a beleza da idéia, a idéia do tempo, de que sabe que não poderá compreendê-la a não ser que a tenha ultrapassado, isto quer dizer assim que tenha terminado o seu livro...
Afastei-me da minha proposta apenas para retomá-la aqui. Toda mise en scène, toda idéia, portanto, é inevitavelmente acompanhada por um mínimo de moral.
Os travellings, disse Jacques Rivette, são uma questão de moral. Tendo de realizar, porque acontece que eu tenho atrás de mim alguns anos de matemáticas, um filme sobre Evariste Galois em que eu havia tentado (atingido no coração por essas palavras escritas às pressas em seu manuscrito, em que cem anos à frente do seu tempo, ao invés de dormir ou praticar o tiro ao alvo, ele tenta, na última noite que lhe resta para corrigir: “o leitor demonstrará por si mesmo, eu não tenho tempo!”) narrar sua última noite, pareceu-me de uma polidez elementar assimilar, ou tentar com as minhas débeis forças, essa teoria dos grupos que ele havia vislumbrado: o espectador que julgue se consegui! Fiquei chocado, à luz da documentação que havia reunido, que a única coisa que os historiadores retinham é que ele havia sido preso por ter proferido algumas injúrias a respeito de Louis-Philippe, culpado aos seus olhos por ter perdido a revolução de 1830, e eis o que faria com que ele passasse à posteridade, não fosse o salto quântico que aos 20 anos ele faria à análise...
Sempre me forcei a mostrar diante dos textos literários que eu me propus ou que me propuseram em levar às telas a humildade mais extrema. Assim foi com Une vie de Maupassant, roteiro que um conjunto de circunstâncias ou o acaso, para não dizer o Espírito Santo, haviam colocado em minhas mãos, sob a condição que eu não discutisse por um instante - e de resto eu não tinha o menor desejo - que a vedete fosse Maria Schell, que havia acabado de obter um grande prêmio de interpretação feminina por Gervaise em Veneza, aonde o contrato havia sido assinado. Perguntam-me “você conhece o livro?”. Mentindo, e sentindo instintivamente o que se oferecia a mim, respondo que sim. Chegando no aeroporto, pois voltávamos de Munique eu e a produtora, onde havíamos nos encontrado com Maria Schell por conta de seu famoso contrato, eu para lhe propor La plaie et le couteau, que havia escrito com Françoise Sagan e que a seguir se tornou La proie pour l’ombre; chegando, portanto, no aeroporto, precipitei-me sobre o livro e li Une vie todo, sublinhando com uma caneta azul o que me agradava, barrando o resto com vermelho. E me pus as questões: o que Maupassant, ao mostrar os infortúnios de uma mulher, quis dizer da necessidade primordial do divórcio me interessava apenas moderadamente.
Eu levo o livro para uma leitura mais aprofundada e por detrás desse argumento um segundo Maupassant aparece, o Maupassant de Horla, aquele que deveria morrer louco, e também e sobretudo uma abordagem quase mística, telúrica em todo caso, da natureza circundante: mar, floresta, tempestades, neves, o germinar da primavera e do ciclo incessante e incessantemente recomeçado das estações. Se, em A Besta Humana de Zola, Renoir viu Gabin a ponto de estrangular com suas grandes patas Blanchette Brunoy, eu, em Une vie, havia visto uma mulher desesperada, à beira da loucura porque descobriu que havia sido enganada, desaparecendo para se esconder na floresta sob o volteio da neve. Eu havia a imagem desta vez - a neve - e a idéia, a de uma natureza ao mesmo tempo benéfica pelo seu sol e mortífera. Eu tinha o meu tema! Outra coisa, e que apenas aparentemente nos afasta do nosso assunto. Todo aluno de filosofia conhece “O Mito da Caverna” como exposto por Platão em A República, do qual lembro de algumas palavras: os homens, para Platão, estão sentados, acorrentados à parede dos fundos de uma caverna, em que são projetadas por uma fogueira que se encontra atrás deles as sombras sem consistência dos personagens reais, carregados de objetos preciosos, que vêm e vão pelo orifício. Nós, como os prisioneiros, nós não os vemos porque lhes viramos as costas. Nós vemos apenas suas sombras, suas aparências. Claro, bastaria abandonar as correntes e chegar à saída e ao sol para se apropriar da riqueza da vida verdadeira - as idéias.
Revertamos o mito e perguntemo-nos, ao inverso de Platão, se a sabedoria não estaria ao contrário em permanecer sentado como no cinema deleitando-se dessas aparições, no cinema em todo caso. Pois no cinema só se vê as aparências, isto é: o que a câmera viu antes de nós. Somos obrigados a confiar, pois só vemos o que ela viu. O que a câmera vê, e obriga o espectador a olhar, são as aparências: na verdade, é a própria realidade, é a vida, a verdade que ela nos faz contemplar. No cinema diremos que sim, mas e na vida?
Bem, na vida não é diferente. Vemos apenas as aparências e nós não as discutimos, apesar de alguns bons espíritos que querem nos fazer crer que estamos sofrendo de cegueira ou de astigmatismo, e que seria necessário procurar em outro lugar. É esta a lição dos professores de moral de hoje, o chamado politicamente correto! Temos a realidade diante de nossos olhos, mas eles nos designam as nuvens. Pode-se prolongar a lição e, para resumir, dizer que sob o pretexto de descobrir a verdade eles nos fazem voltar os olhos para a única luz, o que na história é chamado de Iluminismo. Ao passo que existe uma outra claridade, mais escura, mais subterrânea, mas mais rica em mistério que nos vem da escuridão, desse fogo central da terra que nunca, desde o início dos tempos, cessou de se consumir. Historicamente, esta é uma querela entre Sócrates, que procura a verdade, e aqueles que o precederam, os pré-socráticos: Thales, Heráclito, Zenão, Parmênides, a quem ele acusa de sofismo, pois se contentavam em dizer apenas o que viam, o movimento “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio” (Heráclito, O Ciclo das Estações).
O percurso dos astros na noite estrelada. Todo mundo, após dez mil anos, convive com essa idéia que se tem como uma evidência da razão. Mas vendo de mais perto, não é certo que neste combate desigual é Sócrates quem ganha. Basta ver a dificuldade que Platão tem em confundir seu adversário em Parmênides, que é sem dúvida o mais obscuro e de mais difícil compreensão dos discursos de Platão. Mas chega de aula de filosofia. Uma última palavra, porém: eu não tenho certeza se Sócrates, ao beber a cicuta, o fez não para provar a imortalidade da alma, mas porque tinha se dado conta do erro que havia cometido!
Para retornar e terminar pelo cinema, há um autor que particularmente admiro. É um argentino que se chama Borges e que diz muito melhor do que eu o que tentei exprimir. Acontece que em uma época a televisão tinha suficiente liberdade e não muitos aparelhos para os quais transmitir para que me propusessem de uma vez por mês levar a minha câmera, com alguns subsídios, e ir filmar o que passasse na minha cabeça. Foi nessa quase liberdade que decidi filmar Borges, suas Ficções que me haviam fascinado. Eu visitei o Jardim Botânico, filmei uma jaula em que rondava uma esplêndida pantera enquanto lia o texto de Borges, El oro de los tigres, e também conduzi minha câmera pelas ruelas sem nenhum personagem, filmando os caminhos que se bifurcam. Filmei inclusive, mas desta vez nos jardins do Instituto, uma história intitulada O Milagre Secreto: é a história de um juiz tcheco condenado à morte pela Gestapo. No momento em que vai ser fuzilado, ele implora aos céus de lhe dar um ano, o tempo de concluir sua tragédia. O movimento do travelling é interrompido, os figurantes são imobilizados e em seguida há três frases de Borges em que ele fala de uma misteriosa écloga de Virgílio. O movimento continua, os soldados atiram, o corpo tomba ao chão, acabou...
Falei sobre esses esboços realizados com o mínimo de meios exclusivamente para a TV, mas para mim, exceto a falta de recursos, não existe diferença alguma na minha maneira de filmar entre o que realizo para a grande e a pequena tela. Não creio por um segundo numa linguagem televisiva específica. Estas são besteiras, inventadas por pessoas que, na sua maior parte, jamais abordaram a grande tela por não serem capazes, e que pelo mais e pelo menos... Enfim, mencionei esses rápidos esboços para melhor ilustrar o meu ponto: a saber, que não existe nada, mas absolutamente nada que poderia ser chamado de uma adaptação... Nada a não ser a passagem de uma linguagem, que tem as suas leis, para outra linguagem, cujas leis, por mais paradoxal que possa parecer, integram-se às primeiras... E a tal querela dos autores de filmes é tão vã, tão inflada de vento como um exagero.
O autor de um filme é aquele que tem entre as mãos o poder de falar, de decidir, de julgar, ou seja, que é a câmera pela qual necessariamente passa a idéia que ele quer comunicar... Esse poder, mas também a capacidade: chegando em um platô, o diretor é desde o primeiro minuto julgado pela sua equipe que o abandonará no ato como um exército que desmascara o seu chefe porque sabe que ele não tem a força de caráter para conduzi-la ao fogo, isto é, para proteger sua vida, esse poder transcendente com o qual é investido.
No cinema não há um primeiro espectador, um chefe de orquestra que decifra uma partitura. Há um líder, e só um líder: cabe a ele provar isso.
Não posso concluir este breve relato sem uma palavra sobre o que no cinema aos olhos do público, que, em todo caso, tem sempre razão, é o essencial: quero dizer os atores e as atrizes.Travelling engenhoso, efeitos de luz, muito bem, mas tudo isso é mais ou menos um mecanismo mais ou menos habilmente organizado, genial em Ophüls e Visconti para destacar ao mesmo tempo em que integra na narrativa tal ou tal atriz, no lugar da qual não somos freqüentemente colocados, pois se ela é a heroína, a razão de ser de toda essa engrenagem, ela é também a vítima, a chaga e o fulcro, e por isso devemos perdoar-lhe todas as suas infantilidades, os caprichos que ela pode ter, suas crises de nervos, que refletem apenas um pânico intenso, pois ela sabe que há sempre para ela um momento de verdade, no momento em que se projeta, como uma máquina de matar, sobre os trilhos, a câmera que na passagem apanha o seu rosto e transporta para sempre de sala em sala sua beleza, a verdade, através do mais imperceptível piscar de olhos, sua alma presa na armadilha e espalhada aos grandes ventos.
O pé, disse o manual militar para uso de soldados de segunda classe, é o objeto de todos os cuidados. É também, ou pelo menos deveria ser igualmente assim, com as atrizes para os seus diretores. Sem pé o soldado não pode andar, e sem as atrizes um diretor não pode rodar. Por isso deve vigiá-la como um tesouro, com um olho de inveja.
Certa vez perguntei a Danielle Darrieux, modelo de espontaneidade, de talento natural e inato, como ela fazia para se entender tão admiravelmente com Ophüls, cuja reputação de maníaco da complexidade técnica e do entrecruzamento de trilhos de travelling e movimentos de grua havia se tornado lendária. Mas, respondeu-me ela com o seu adorável sorriso, ele mesmo vinha me pegar de manhã no meu camarim, beijava-me e me levava pela mão, enquanto me contava uma história engraçada, acompanhando-me com o mínimo de indicações técnicas pelo décor. Eu tinha, por assim dizer, a cena nos pés...
Eu gostaria de terminar esta apresentação bastante longa, que alguns julgarão com razão um tanto quanto austera, com três breves historietas que talvez os iluminem. São histórias de atrizes.
A primeira diz respeito à grande Bergman quando, ciente que seu caso com o seu grande amante latino havia de terminar, vê-se obrigada a filmar Anastácia, a Princesa Esquecida sob a direção de Anatole Litvak, um veterano para o qual ela não foi feita. No primeiro dia de filmagem ela é odiosa, discutindo a respeito de tudo, recusando qualquer indicação de cena. Litvak se curva mas não se deixa quebrar. Mas no terceiro dia, eis que ela se transforma numa adorável criatura, antecipando o menor desejo do seu realizador. Encantado, ele a convida para jantar e, durante a sobremesa, pergunta: Ingrid, agora que nos tornamos amigos, diga-me por que no primeiro dia você foi tão desagradável?. E, com um sorriso angelical, aquele de Interlúdio, ela responde: eu senti a sua força, Tola (o diminutivo de Anatole), eu simplesmente senti a sua força.
A segunda história é a de uma starlette que um jovem realizador quer escalar. Ele se envergonha, não sabe o que lhe dizer. Ela: se você quer que eu interprete o papel que você me propôs, senhor, comece olhando para mim diretamente nos olhos.
A terceira história não me faz honra, e aconteceu durante uma cena de Une vie. Maria Schell explode: “Jamais direi este diálogo que me ridiculariza e me ofende!” Ela sai, batendo a porta, e todo mundo senta no chão. Ela volta, acalmada, abraça-me e retoma o seu lugar, mas eu, idiota, sopro para Claude Renoir: “não há necessidade de colocar filme na câmera, ela interpretará tão mal...” Milagre, ela é genial, de arrancar lágrimas. Ela havia feito toda essa cena a fim de entrar no estado físico para rodá-la, mas eu, imbecil que era, compreendi apenas muito tarde. Apressei tudo para a câmera fosse recarregada. Ela já não estava tão bem na cena. Eu havia perdido a minha chance!
Uma última anedota: eu havia contratado para um filme de televisão que se chamava Une fille d’Ève uma jovem atriz porque ela conseguia dizer o texto, o que para mim era essencial. Tudo estava indo muito bem, restava rodar a última cena. Ela passa numa carruagem e olha pela última vez seu amante, Nathan (Mathieu Carrière), o qual vê se perdendo nos braços de sua amante. Balzac escreve: “... Ela lhe lançou um olhar de desprezo”, mas, e eu quis abraçá-la, ao invés desse olhar de desprezo foi um olhar de nostalgia que ela lhe lançou, no espaço de um instante. Essa jovem atriz havia compreendido Balzac melhor do que eu poderia ter feito, e que o próprio Balzac poderia ter feito...
Para resumir: o que há de fascinante neste trabalho é que ele é um reflexo da vida. Por mais que se façam inúmeras tomadas, não há mais rascunhos do que há na vida. Vive-se uma só vez, e um filme, como a vida, transcorre de uma só vez, e é a grandeza dos dois, sua riqueza, seu esplendor. Não há no cinema, assim como na vida, o direito ao erro, caso contrário paga-se o montante em peso de sangue.
Tão ligado que se possa ser às múltiplas felicidades que nos oferece a marcha de nossa existência, tão guloso que se possa ser dos prazeres terrestres, das idéias encantadoras, amante ao mesmo tempo da lagosta à americana e descobrindo um prazer quase sexual, não vejo a diferença, na leitura de Leibniz, por exemplo, ou no encantamento, cindindo o hemistíquio, dos mais finos e ao mesmo tempo mais cruéis alexandrinos racinianos, sabe-se, com uma pontada no coração mas que talvez multiplique esse prazer, que tudo isso só nos é dado uma vez, e que tal qual o Zenão de Elea, que voa e que não voa, a flecha se estica numa única direção sem retorno - eis o gênio de Proust, o do curso do tempo -, e o que é verdadeiro para a vida também é para o cinema, que sempre é, mentira suprema na qual a câmera nunca mente, uma imitação mais ou menos bem sucedida, um trecho, imaginário e real ao mesmo tempo, dessa única vida...
Ama-se o cinema - e eu diria que só se o faz corretamente, pois aqui fazer ou amar é a mesma coisa - como se ama a vida. Faz-se cinema, que me perdoem essa comparação, como se faz amor com uma mulher, mais ou menos bem, com mais ou menos excesso: é segundo uma questão de temperamento.
Arte ou forma de arte surgida quase no extremo fim da história desta civilização ocidental que é a nossa, e tomando emprestado desde então de todas as formas de arte que a precederam e pelas quais esta civilização ocidental se exprimiu - da música de Bach o ritmo e o contraponto; da pintura de cavalete de Tiziano, de Tintoretto, de Velázquez, de Caravaggio não somente o quadro e a perspectiva, mas essa organização teatral das coisas; dos romances de Cervantes, de Rabelais, de Diderot, de Balzac o movimento e o curso inevitável do tempo -, o cinema, pois falamos no passado, terá sido o momento privilegiado e a forma própria por onde se deixou ser pega pela armadilha, representada, idealizada talvez, a própria vida, a vida humana pelo menos, a realidade e a verdade, nesse momento, hic et nunc, deste mundo que marcha sem o saber, ao mesmo tempo em que o sabe, rumo à decomposição, uma agonia ainda mais inelutável pelo fato de que as melhores mentes desta época parecem ter concordado para trabalhar em concerto sua oração fúnebre.
O que é em definitivo a mise en scène, senão a organização das trevas à luz de uma idéia fixa?
Ela nos conduz, essa mise en scène cinematográfica, esse arrebatamento lírico, acima dessas elaborações que se elevam ao sublime e que são, que terão sido, por exemplo, A Paixão Segundo São Mateus de J. S. Bach, onde o contraponto não exerce apenas o papel de regulador mas de metteur en scène, como a cesura ao hemistíquio nos alexandrinos de Fedra, que bem valem alguns projetores em eficácia lírica, ou as últimas linhas das palavras trocadas entre Lucien de Rubempré e Carlos de Herrera, vulgo Vautrin, ao fim de Ilusões Perdidas, nos conduz enfim, nessa melodia do tempo, à tragédia grega, onde tudo começa e tudo acaba e onde a ordem dórica apolínea, arrebatando-nos in extremis pelas lamentações do coro que chora o seu deus Dionísio todo manchado do suco de amoras violetas, deixa intacto esse conflito que dura ainda e que ainda não cessou de opor às leis caprichosas da cidade aquelas imprescritíveis, não escritas, sobre as quais está fundada desde sempre a própria perenidade da nossa condição humana...
Por quê?
Porque o cinema é representação, imagens da vida, meditação, é o acompanhamento consciente desse movimento para a frente que incessantemente e consistentemente o conduz - “out, out, brief canons” (Otelo) - rumo ao que Shakespeare chamava de “the last syllabel of recorded time”.
Imagens encantadoras, beleza dessas imagens, imagens dessas riquezas, múltiplos esplendores, flores suntuosas, festas, fragmentos de eternidade, felicidade louca, de um lado, que a vida vos oferece, e do outro, fazendo-nos pender sobre essa beleza, o olhar sobre ela posado, e que já era o de Velázquez ao colocar seu cavalete no canto do seu Las Meninas.
Podemos entender somente agora, seguindo pelo olhar, por exemplo, o espectador que com a luz acesa sobre a tela vai, na noite que cai, reencontrar sua rotina diária, mas meditando apesar de si mesmo sobre o breve encantamento que essas imagens lhe proporcionaram. Para compreender o que queria dizer esse Proust que me permiti chamar em meu auxílio ainda no início... Pois se a beleza das imagens está localizada na parte de trás das coisas, é essa beleza que o espectador imaginário, ao ir embora, deixa para trás, após ela o ter impressionado pelas suas imagens.
Ao passo que o segundo tipo de beleza, o das idéias, é só agora que ele a entende, agora que ela se oferece a ele na sua meditação e pelo próprio fato que está a ponto, ao seguir em frente, de ultrapassá-las.
É assim com toda forma de espetáculo: ópera, balé, mas também o do mundo em particular - não falo do além -, empanturrado, repleto de imagens, de nutrientes dos quais provamos em excesso os esplendores, um tempo que vem à mente de cada um no exato momento em que, assim como no nascimento a parteira corta o cordão umbilical e lança o recém-nascido como um balão para a vida, a tesoura do coveiro corta a corda que ainda mantém o caixão acima da lama do sepulcro.
A idéia que remete ao seu lugar, exaltando ou reduzindo, aquilo que Malraux chamou de pilha miserável de segredos - tudo aquilo que vivemos.
É à beira da morte, eis o que quis dizer Proust, que nós vemos a beleza das idéias, nesse instante fatal em que nós enfim as ultrapassamos, e é em pleno prosseguimento desta vida única que nós vemos a beleza das imagens, no momento em que e porque nós as vivemos...
E é isto, sem dúvida, o que pressentimos cada vez que, com o seu tique-taque no silêncio que se faz na sala, começa a ronronar o motor do aparelho de projeção, que remete àquele que todo cineasta conserva no fundo do seu coração. Porque ele pode dizer, até mesmo gritar, a que para ele é a palavra de amor mais doce, mais louca...
“Câmera!” “Rodando”, responde o eco. Então AÇÃO...
(31 de Março de 2005. Traduzido por Bruno Andrade, recolhido da edição de Junho de 2012 da revista Foco.)
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